A chegada da primavera no Uzbequistão

Pediatra brasileira fala sobre um tempo de renovação de esperança, também para seus pequenos pacientes tratando de tuberculose

Tenho vivido tantas novidades por aqui que nem sei por onde começar! Talvez, pelo ano-novo deles. É parte da cultura persa, Navruz. Nesse dia, comemora-se a chegada de um novo ano, com a chegada da primavera! Comemora-se a chegada das flores e a fertilidade da terra. Com isso, minha esperança também se renova. Todos precisamos fechar ciclos e iniciar outros, e datas comemorativas são sempre uma boa pedida. Com esse novo ano persa, espero um futuro melhor para todos.

Estou de longe vendo o Brasil passar por uma crise política e também na saúde, com casos de dengue, zika e chicungunha no país. Aqui, a epidemia continua sendo de tuberculose. Como sou pediatra, vejo muitos “pequenos” tratando de tuberculose, e muitos vivendo os efeitos colaterais do tratamento. Tratamento este que pode durar até cerca de dois anos! Diferentes sofrimentos, diferentes realidades. Mas minha esperança ainda é a mesma: um futuro melhor para todos, com livre acesso à saúde, tratamento igualitário, independente de nacionalidade, religião ou condição financeira. Seja bem-vinda, primavera, e que com você floresça um tratamento digno para cada um que precisar.

Há cerca de um mês, fui fazer uma visita domiciliar. Minha pequena paciente tinha acabado de sair do hospital. Está enfrentando a tuberculose multirresistente, que significa longos meses pela frente tomando injeções várias vezes por semana. Após o início do tratamento, para que houvesse manejo dos efeitos colaterais, ela foi liberada para continuar o tratamento em casa. Ao chegar na casa, fui muito bem-recebida pela irmã da pequena. A mãe delas morreu no ano passado e estava tratando de tuberculose. Minha pequena tem uma sobrinha, filha dessa irmã que está tomando conta dela. A sobrinha também foi avaliada e, ainda bem, está saudável! A forma de contágio da tuberculose se dá, muitas vezes, dentro do ambiente familiar; por isso, é muito importante a educação em saúde, para tentar conter o contágio por essa bactéria.

Em todas minhas visitas, e a cada novo contato com meus pacientes e seus familiares, eu sempre pergunto o que sabem e tento informa-los um pouquinho mais sobre a doença. Mas, voltando à minha pequena, ela estava vomitando todos os dias, mesmo com o uso de medicações contra vômitos. Tinha perdido um pouco de peso, desde que saíra do hospital. Ela, com um sorriso lindo no rosto, me perguntou sobre uma de nossas conselheiras. Fiquei muito feliz ao ver que a relação entre a equipe de Médicos Sem Fronteiras (MSF) e nossos paciente se dá de forma tão efetiva. Os pacientes precisam de mais do que medicações para serem tratados. E, nesse ponto, a pequena estava com uma condição familiar complicada: o pai trabalhando fora da cidade, a irmã se divorciando e a sobrinha precisando de cuidados por ainda ser um bebê de colo. Ela vivia com a irmã e a sobrinha dentro de uma casa de três cômodos, dividia a cama com a irmã mais velha no mesmo cômodo do fogão a lenha, porque é o único cômodo quente da casa – aqui, no inverno, a temperatura muitas vezes é abaixo de zero, e não há aquecedor na casa.

Levando todas essas informações em consideração, conversamos com os médicos do sistema de saúde local, com nossas conselheiras também, e decidimos por reinternar essa paciente, para melhorar o manejo dos efeitos colaterais e garantir a continuidade do tratamento.

A decisão de reinternar um paciente ambulatorial nunca é fácil. Temos muito a considerar antes de definir o que é provavelmente o mais indicado. Medicina não é uma ciência exata, o fator humano não é previsível, não é uma constante. E, com isso, o resultado não é o mesmo, ainda que seja feito tudo igual. Portanto, cada caso demanda uma decisão individualizada. E isso é o que mais me apaixona na medicina e me instiga sempre a aprender. 

Mas, novamente, de volta à pequena paciente. Tivemos uma comemoração no hospital, nessa sexta-feira do ano-novo persa, o Navruz, para os pacientes. E, nessa comemoração, foi a primeira vez que vi minha pequena desde a internação.  Ela estava em uma das apresentações de dança típica local. Estava linda, com o cabelo arrumado, um vestido lindo, já está ganhando peso e estava com uma carinha muito, muito feliz. No final, ela pediu para tirar uma foto comigo. Que delicia, uma foto com minha pequena! E, principalmente, a certeza: sim, tomamos a decisão correta. Vê-los em melhores condições, definitivamente, não tem preço.

Quando me graduei em medicina, fiz uma promessa: primum non noncere, que significa “primeiramente, não causar danos”, em latim. Demorei um pouco para entender que essa promessa não significa curar em todos os casos, mas, sim, sempre tentar diminuir a dor e o sofrimento de meus pacientes e suas famílias. E eu sempre me lembro dessa promessa, em cada paciente que vejo e que preciso tomar uma decisão. Aqui, só trabalho com pacientes com tuberculose. O diagnóstico dessa doença em crianças é bastante complexo, o que pode atrasar o tratamento correto por bastante tempo. Mas, por outro lado, diagnosticar uma criança com tuberculose, ainda por cima se com resistência a medicamentos, significa colocar a criança em um tratamento de cerca de dois anos, com potenciais efeitos colaterais. Assim, o que penso todos os dias é: começar um tratamento longo com possíveis efeitos colaterais ou atrasar o diagnóstico de uma criança e com isso expô-la a menores chances de sucesso em seu tratamento. Primum non noncere. Quando vejo meus pequenos reclamando das injeções, apresentando vômitos, não podendo ir à escola, meu coração dói. Mas também dói quando penso neles desabilitados, sem o tratamento correto.

A decisão é difícil, mas o objetivo é único: vê-los saudáveis novamente e plenamente recuperados.

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