Cuidando do que não se vê

A psicóloga Deborah Duarte fala sobre a sua experiência trabalhando com saúde mental há 8 anos em MSF

Cuidando do que não se vê

Falar de saúde mental não costuma ser fácil ou tranquilo. Por mais modernos que sejamos, ainda há muito preconceito, mitos e fantasias com relação ao tema. As pessoas ainda têm muito medo de acessar o desconhecido e o intangível, o que não se vê e só se sente.

Em cada um dos projetos em que estive, o manejo e a abordagem era diferente. Na Faixa de Gaza (2010) eram realizados atendimentos individuais com a população que sofria com o conflito entre Israel e Palestina. Os atendimentos eram individuais e semanais; utilizávamos a técnica de psicoterapia breve, na qual se tem um foco e número de sessões pré-estabelecidos. Era um espaço para dar suporte psicológico para as pessoas, a fim de aliviar o sofrimento dessa população. Eram crianças, adultos, homens, mulheres, idosos, cuja semelhança era o sofrimento causado por anos de intenso conflito e embargo. Os temas? Perdas, muitas perdas. Perdas de casa, de entes querido, de identidade, de famílias inteiras. E, o que é pior, perda da esperança. O resgate disso para mim era fundamental e, com certeza era o que eu buscava nos atendimentos.

Já no campo de refugiados de Dadaab (2011), no Quênia, a abordagem foi diferente. A população nunca tinha nem ouvido falar de psicólogos. Era algo completamente desconhecido para eles.

O contexto não favorecia a prevenção nem os cuidados com a saúde mental. Era um campo de refugiados lotado, onde chegavam pessoas fugindo da guerra civil, da seca e da fome. Famílias inteiras e outras “pela metade”. Pela metade porque a travessia pela selva para chegar ao campo era longa e dura. Ouvi que as mães perdiam seus filhos pelo caminho. Eles morriam de cansaço, fome ou sede, mas a mãe tinha que seguir sua caminhada. Afinal, tinha outros filhos para cuidar.

Essas pessoas não sabiam o impacto que suas próprias histórias tinham em sua saúde física e mental. Só se davam conta quando já estavam no limite.

O trabalho lá era ir ao campo para conscientizar essa população sobre a importância dos cuidados com sua saúde mental. Realizávamos visitas domiciliares e encontrávamos as mais diversas situações, quase sempre muito precárias. Havia pessoas acorrentadas do lado de fora de casa, por terem “comportamentos estranhos”, e a família tinha medo que elas fugissem para a selva e acabassem morrendo. Nós íamos sempre em equipe, conversávamos, tentávamos entender a dinâmica e a história de cada família para, então, orientar os cuidados e chamá-los para irem até as clínicas.

Após esse contato para entender um pouco as necessidades daquelas pessoas, percebi que grupos psicoterapêuticos e psicoeducacionais seriam mais benéficos para eles. Eles precisavam se fortalecer, fortalecer sua identidade e (re)fazer vínculos.

Com isso, formamos grupos com temas estabelecidos. Sabíamos que não ajudaríamos a todos, mas precisávamos estabelecer algumas prioridades, que foram escolhidas de forma a beneficiar os mais vulneráveis. Como por exemplo grupos de mulheres, grupos de pais com filhos com epilepsia (havia um grande número de crianças epiléticas no campo), familiares de pessoas com esquizofrenia e grupos de crianças.

Há várias formas de cuidado em saúde mental. A prevenção com as visitas domiciliares e os grupos psicoeducacionais, o atendimento individual ou em grupo, tudo com um único objetivo: cuidar daquilo que não se vê. Poder se restabelecer após um trauma, após uma situação de extrema crise. Poder sentir-se humano após tantas experiências fortes e marcantes.

Isso é base para o que faço agora. Hoje, ofereço suporte psicossocial aos nossos profissionais que vão para os projetos para prestar ajuda aos que precisam e que não deixam de ter vivências forte e marcantes. Quando voltam de um projeto, precisam se reestabelecer, voltar para suas vidas com alguma confiança no ser humano, pois, como disse, as experiências deixam marcas. Cuidar dessas marcas é fundamental. Cuidar para que não se tornem feridas, que não machuquem. Com isso, a cada ida e retorno do profissional internacional, eu ofereço esse suporte, ofereço esse espaço para eles falarem de suas vivências, de suas questões. Cuidamos, juntos, para que esse retorno seja cauteloso e  olhado com o devido respeito, intensidade e valor.

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