A decisão acertada de partir para trabalhar com Médicos Sem Fronteiras

A logística brasileira Luara Farignolli conta sobre suas experiências em projetos no Zimbábue e na Ucrânia

Tudo começou com um pensamento, com um desejo diferente de querer fazer mais a minha parte, de fazer alguma diferença na minha vida e na vida de outros. E foi assim, nessa mistura de sentimentos e também a base de algumas críticas, como “Você está dando ‘passos para trás’ na sua carreira”, “É muito perigoso”, e por aí vai, que acabei por fim tomando a minha decisão de trabalhar com Médicos Sem Fronteiras (MSF). Pedi demissão da empresa onde trabalhava, fiz minha mudança para a casa da minha mãe, vendi meu carro e esperei ansiosa o meu primeiro projeto. Mudança de estilo de vida, desapego de algumas coisas que eu realmente pensava que eram importantes na minha vida… E foi assim que começou a minha vida em MSF, com um frio na barriga, cheia de energia e pronta para esse novo desafio.

Primeiro projeto: Zimbábue. E que primeiro projeto! País dos sorrisos, dos abraços, da desordem, e, tenho de admitir, das pessoas mais do que especiais. A energia africana corria pela minha veia e eu sentia que um pouquinho daquela terra também fazia parte de mim. Depois dessa experiência, tive a certeza da escolha certa, do meu caminho, e aquela velha Luara de somente seis meses atrás parecia muito distante, quase inexistente. Ter vivido esse primeiro projeto me mostrou muitas outras possibilidades de estilos de vida, muito diferentes do que anteriormente havia tido como experiência, e me fez realmente me questionar e mudar muitos conceitos que eu havia estabelecido anteriormente.

Após seis meses de projeto, 20 dias no lar doce lar, veio o novo desafio: Ucrânia. O meu primeiro pensamento foi: mas o que MSF está fazendo lá? Bom, muito mais do que eu imaginava. Muito antes do conflito ocorrer na Ucrânia em 2014 a organização já estava no país e nosso primeiro programa foi em 1999, prestando cuidados e tratamento para pessoas que vivem com HIV/Aids, bem como a prevenção da transmissão da doença de mãe para filho. Também nosso principal programa antes do conflito e atualmente é o de tuberculose, em que tratamos pacientes com tubercolose multirresistente a medicamentos (TB-MDR) nos sistemas penitenciários e também depois que eles são libertos da prisão, para que possam continuar a receber o seu tratamento no setor civil.

Apesar de não ter escutado muito nos noticiários brasileiros sobre o conflito que ocorreu na Ucrânia, pude entender agora que ele foi muito intenso. Especificamente no leste da Ucrânia, forçou mais de 1,7 milhão de indivíduos a deixarem seus lares, e resultou em 21.500 mil feridos e mais de 9.300 pessoas mortas desde abril de 2014. Ainda hoje, é possível ver o reflexo desse conflito. Em resposta, MSF forneceu suprimentos médicos para os hospitais, suporte para saúde mental, cuidados de saúde primária e doações de medicamentos para a população deslocada e os que vivem perto da linha de contato na parte sul da região de Donetsk, nas cidades e vilarejos ao redor de Mariupol e de Kurakhove. Apesar do Minsk II, o cumprimento de acordos de cessar-fogo é mais norma do que exceção, colocando em risco a vida de muitos civis e forçando famílias a fugir e recomeçar a sua vida a partir de zero, às vezes mais de uma vez. Além disso, MSF também dá continuidade ao projeto de tuberculose na cidade de Dnepro, onde eu estava baseada primeiramente quando cheguei, em maio.

Aqui na Ucrânia, eu trabalho na área de gestão da cadeia de suprimentos. Eu estava com um pouco de medo, pois pensei que nunca iria ter contato direto com os pacientes e com nossos projetos em campo, apenas acabaria realizando um trabalho muito administrativo, em que não conseguiria ter contato com o que realmente estávamos realizando. Bem, o trabalho administrativo com certeza acontece, mas a experiência e o que se aprende no dia-a-dia é enorme. O contato que você tem com os outros colegas de trabalho e com os profissionais internacionais morando na mesma casa, trocando experiências diárias, é único! Até porque, para mim, as histórias e experiências de nossos profissionais internacionais são sempre muito interessantes e mágicas. Na hora do jantar, meus olhos sempre brilham ao escutar suas histórias. Acredito que MSF seja isso: pessoas e essa troca de experiências, conhecimentos, carinho e amor entre colegas e as pessoas que atendemos.

A Ucrânia me surpreendeu muito. Eu acreditava que o país teria toda a cultura influenciada pela Europa, mas tem muitos aspectos da Europa Oriental. É um país muito desafiador para se trabalhar, muito burocrático e com um problema de comunicação enorme, principalmente no meu caso. Nunca havia pensado anteriormente em aprender russo, então, quando cheguei e vi que contratos, reuniões, visitas, apresentações (é claro) eram quase todas em russo, eu percebi o quão dependente eu seria do meu time para realizar as minhas próprias tarefas, e acredito que isso foi e ainda está sendo um grande desafio para mim (apesar de já ter começado as minhas aulas de russo).

Está sendo muito interessante vivenciar esse momento da nossa organização, de pós-emergência, aqui na Ucrânia. Estou enfrentando os desafios citados anteriormente diariamente, me adaptando à cultura local, de uma forma que possa agregar para mim e para as pessoas que atendemos. Poder fazer a diferença em cada um de nossos pacientes diretamente e indiretamente é o que me faz acordar todos os dias renovada, cheia de energia e com o sorriso no rosto para mais um dia no meu projeto, em MSF e na minha vida.

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