Guerrero: a guerra quotidiana

A médica Alice Jeri, que coordenou uma clínica móvel no estado mexicano de Guerrero, recorda a forte interligação estabelecida com as comunidades, num país assolado pela violência.

Guerrero, México

 

Um sorriso de incredulidade insinuou-se na face expectante – uma primeira missão no México?

Para uma médica portuguesa com fortes raízes na América Latina, fazia todo o sentido.

O objetivo era coordenar uma clínica móvel no estado de Guerrero, num contexto de violência social.

Fui ler. E fui invadida pelo assombro.

O estado de Guerrero é um dos 36 que compõem o imenso México. É também, reconhecidamente, um dos mais violentos, sendo que as agressões constituem a quarta causa de morte mais frequente neste território. Dentro deste estado, como por todo o país, um sem-número de outros pequenos, mas autênticos, microestados, em que se sediam diferentes grupos de crime organizado, sustentam uma guerra contínua pelo controlo territorial e económico.

Dedicam-se à extorsão, ao tráfico de droga, de bens agrícolas e de minérios – e também ao tráfico de pessoas.

O produto principal é a violência. Milhares de pequenas comunidades, dispersas por um território empobrecido e acidentado, sofrem com a intimidação violenta, com a extorsão e, frequentemente, com o isolamento imposto pelas dinâmicas dos grupos assim como pelas características geográficas.

O acesso aos serviços públicos é especialmente afetado, e prolongam-se as ausências de materiais e profissionais de saúde devido à insegurança ou a bloqueios de passagem. A pandemia da COVID-19 virou os serviços de saúde do avesso em todo o mundo, mas nestas latitudes o isolamento forçado foi verdadeiramente dramático em comunidades já de si no limite da vulnerabilidade.

A trabalhar no México desde 1985, a Médicos Sem Fronteiras não podia ficar indiferente a esta realidade. Foi assim que, desde 2015, se lançou à estrada o Projeto Guerrero, com o qual equipas móveis de saúde percorrem o estado, levando cuidados de saúde física e mental às comunidades mais afetadas pela violência.

Com bandeiras brancas de esperança, as carrinhas, também brancas, atravessam estradas de asfalto, caminhos íngremes, rios e postos de controlo militares ou paramilitares.

Numa zona profundamente instável, mais do que as bandeiras são os princípios que nos protegem: neutralidade, imparcialidade, independência, humanidade. A organização é conhecida e respeitada e a aceitação, a determinação e o compromisso são os principais instrumentos ao serviço das populações que delas necessitam.

Após largas horas de estrada, a chegada às comunidades é vivida com empolgamento. A prioridade é anunciar a chegada e estabelecer contacto com a população e com os líderes locais. Profissionais médicos, de psicologia, de enfermagem, de logística e de gestão – saltando da carrinha, a equipa reúne energias e muita vontade, e em menos de meia hora está a clínica montada: panos, lonas e fitas dividem geometricamente o espaço de uma antiga escola, ou centro de saúde, ou casa pública, formando mutáveis consultórios, o posto de triagem e uma zona para lavagem das mãos e distribuição de máscaras. Comunidade.

Em menos de nada, começa o atendimento. Gente de todas as idades reúne-se para aceder aos serviços. Nas clínicas MSF, cuidar da saúde física é tão importante como da saúde emocional e comunitária; por isso, as atividades de partilha coletiva são centrais nestes dias que passamos com cada população. Capacitações sobre temas de saúde, discussão livre ou estruturada sobre as consequências diretas ou indiretas da violência na saúde e nas dinâmicas comunitárias, decorrem diariamente num ambiente de partilha e enriquecimento mútuo.

Fortalecendo os recursos da comunidade, deixamos mais do que trouxemos: deixamos pessoas mais atentas às suas próprias necessidades, mais conhecedoras das suas forças e fraquezas e dos serviços que têm disponíveis; deixamos líderes mais capazes de apoiar a sua população em caso de acontecimentos violentos ou problemas de saúde; deixamos laços comunitários fortalecidos na compreensão da vivência individual e coletiva dos diferentes eventos.

Também levamos connosco muito mais do que trouxemos: levamos incríveis exemplos de resistência, solidariedade, comunhão e força de vontade. Levamos um mais sólido conhecimento da realidade na qual trabalhamos, levamos propostas, ideias e vínculos que nos tornam mais fortes como organização, porque nos interligam aos nossos pacientes, aos seus pontos de vista, vontades e necessidades.

No regresso à base, vimos sempre carregados com a vontade de fazer mais, de transmitir as necessidades, anseios e o sofrimento destas comunidades esquecidas. Por isso, cada visita não termina em si própria – antes se abre como uma plataforma para o diálogo com as estruturas sociais, no sentido de conseguir as possíveis respostas estruturais. Regressamos, também, com vontade de voltar, uma e outra vez, crescendo e mudando com cada comunidade até à nostálgica e esperada última visita, marcada pelo reequilíbrio dos sistemas de apoio coletivo, pela reorganização das atividades quotidianas e por uma essencial melhoria na autoconfiança e capacidade de enfrentar o futuro.

Entre avanços e recuos fica, contudo, muitas vezes a inquietação de nos sentirmos assistentes nesta “guerra silenciosa”, sem tréguas nem termo no horizonte, que longe dos holofotes mediáticos vai roubando vidas, alegria e esperança à enganosamente serena serra de Guerrero. Como por todo o contraditório México.

 

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