A importância de falar sobre o HIV

Em Beira, Moçambique, médica observa as dificuldades das pessoas infectadas com a doença de falar sobre o assunto com seus parceiros

Data: 27/10/2016

Hoje faz um mês, dos sete que vou passar aqui em Beira, Moçambique. O dia hoje será no centro de saúde da Ponta Géa. No início da manhã, fui participar de uma sessão de aconselhamento para início da terapia com antirretrovirais (Tarv). Queria conhecer o trabalho de Felizberto, nosso conselheiro. Eram, ao todo, seis pessoas, todos com idade entre 25 e 45 anos. Todos tinham testado para o HIV recentemente, recebido o resultado positivo e agora iriam começar um tratamento para o resto de suas vidas.

Uma mulher muito magra me chamou atenção, que não quis se apresentar e passou quase todo o tempo de cabeça baixa e com olhar perdido. Ela estava desidratada e tinha no rosto uma expressão de dor.

Felizberto foi acolhedor, deixou todos à vontade perguntando se alguém sabia como se pega o vírus HIV. Um dos presentes respondeu: “lâminas”. Moçambique é um local onde a Medicina Tradicional é muito presente e alguns tratamentos envolvem pequenos cortes nos braços e costas. Uma lâmina que é usada em pessoa soropositiva e depois utilizada em outra pode transmitir o vírus, mas, sinceramente, na quase totalidade dos casos, a via de transmissão é sexual. Ainda há muito estigma em relação ao HIV. Eram quatro mulheres e dois homens no grupo. Há a crença, sobretudo no interior, de que a mulher que se contamina com o vírus HIV teria tido muitos parceiros.

Me preocupa o olhar da moça, que sabemos agora que se chama Albertina. No meio da sessão de aconselhamento ela parecia não estar bem. Chamamos sua irmã na sala de espera, que a trouxe água e a amparou. Seu semblante era de sofrimento.

Felizberto segue em frente, explicando a importância de se tomar os antirretrovirais corretamente. Atualmente, o tratamento está muito mais fácil, consistindo apenas em um comprimido ao dia, o que é bem tolerado pela maioria das pessoas. Ele fala em primeira pessoa, o que o aproxima do grupo. Quando ele fala da importância de se declarar o diagnóstico ao parceiro, quando houver, Albertina chora discretamente e é consolada pela irmã. Fico pensando se tem marido. Será que faleceu? Será que ela é a única esposa? A poligamia ainda é muito comum no país, sobretudo nas áreas rurais. Ela conta que está com diarreia há semanas, procurou atendimento em alguns locais, mas só aqui lhe foi oferecido o teste para o HIV.

Uma participante conta que tem uma filha de três anos, que ficou viúva há cerca de um ano, que seu marido morreu de “doença” – teria sido Aids, me pergunto – e que seu atual marido é vendedor e não quer vir à unidade sanitária para ser testado. Quando perguntamos se ela contou a ele que seu exame tinha dado positivo ela confirmou e confessou não estar usando preservativo pois ele não aceita. Argumenta que ele quer “nascer com ela”, o que significa ter um filho, como se diz aqui. Felizberto explica que não seria um bom momento agora, pois sua carga viral (quantidade de vírus HIV no organismo) ainda está alta e uma gravidez agora traria riscos para ela e sua criança.

Fico pensando no quanto ainda há por fazer: seis novos casos por dia, cerca de 30 por semana, mais de 120 pessoas ao mês para iniciar um tratamento para o resto de suas vidas. E isso em apenas um centro de saúde. A cidade de Beira tem cerca de 15.

Ainda há muito trabalho a ser feito até que se controle a epidemia e haja uma geração de moçambicanos livres do HIV. Até lá, vamos continuar a ajudar a apoiar os serviços.

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