“A minha casa é já ali”

O administrador português João Antunes conta sobre sua experiência como coordenador de projecto no Sudão

“A minha casa é já ali”

É quase como se fosse a primeira vez. Por mais projectos que se tenha estado, nos dias que antecedem uma partida para o terreno volta-se quase sempre a passar pelo mesmo ritual. Os nervos pré-partida, a curiosidade e interesse profissional em saber para onde se irá e que tipo de trabalho se vai fazer, os “adeus e até já” que damos aos entes mais queridos. É um misto de emoções que em quase 12 anos como profissional de MSF nunca deixei de sentir.

E desta vez, claro, não foi diferente. Era o meu 17° projecto e com a particularidade de ser para um sitio onde nunca tinha estado, apesar de já muito ter ouvido falar: Sudão.

É muito dificil não associar epidemias e doenças a esta zona geográfica com problemas humanitários crónicos como conflitos armados, fome, refugiados e deslocados. O Sudão é um daqueles lugares que sabemos, à partida, que a ajuda humanitária é decisiva e imprescindivel e onde, sem uma resposta de emergência atempada, resultarão consequências mais graves para as populações afectadas.  

Depois de um conflito de mais de duas décadas entre o que são agora o Sudão e o Sudão do Sul, que causaram um total de 1,5 milhão de mortos e mais de 4 milhões de pessoas deslocadas, o Sudão do Sul obteve a independência através de referendo em 2011. No entanto, tal acontecimento não se traduziu na pacificação de uma zona marcada pela instabilidade e insegurança, derivadas do conflito armado. Dessa instabilidade resultou um grande número de refugiados: depois do Uganda, o Sudão é o segundo país da região a acolher mais refugiados oriundos do Sudão do Sul, quase 773 000 pessoas.

Seria neste enquadramento que me esperava a minha próxima experiência. E ao contrário do que se possa pensar, trabalhar em África não faz com que seja semelhante trabalhar em qualquer país africano. Apesar de serem geralmente as mesmas áreas de atuação e por mais experiência que se possa ter, existem sempre especificidades que fazem com que seja diferente trabalhar num projecto de assistência a refugiados no Sudão ou no Uganda ou na Etíopia, por exemplo.

Assim, os primeiros dias são, sobretudo, para ouvir, ler, discutir tudo aquilo que MSF presente há vários anos no país tem preparado, para integrar o mais rápidamente possivel as novas chegadas e incorporações no projecto.

Daí que é sempre importante passar uns dias com a equipa de coordenação na capital do país, debater todos os aspetos relevantes sobre o projecto, para que depois se possa estar mais bem preparado para coordenar a equipa e o projecto numa região remota desse país.  

A partir daqui são três meses seguidos no novo lar, meses que irão parecer anos em certos momentos e em outros apenas alguns dias. É esta a dicotomia temporal do trabalho de terreno e a busca de um equilíbrio temporal entre a gestão pessoal, a coordenação da equipa e a concretização das atividades do projecto.

Este insere-se numa zona onde o rio Nilo, segundo os habitantes locais, é mais claro (apesar de a mim me parecer azul escuro), e daí o nome do estado: Nilo Branco. Os contrastes na paisagem são evidentes… Um deserto imenso e árido apenas interrompido por uma língua de água certamente responsável pela pouca vegetação adjacente. O poder dos elementos e a austeridade visual já dão uma boa ideia dos desafios da população que aqui vive.

A esta zona, e em resultado de conflitos étnicos no Sudão do Sul, chegaram num curto período de tempo milhares de refugiados sul-sudaneses que foram recebidos em diversos campos e centros de acolhimento. O novo projecto de MSF enquadra-se no campo de Khor Waral, que albergava a essa data mais de 50.000 refugiados.

Sendo uma organização médica de ação humanitária, o nosso trabalho iria incidir nas áreas da saúde e nutrição, tendo uma preocupação adicional com a questão da água e saneamento no interior do campo.

A equipa é vasta e composta por diferentes nacionalidades: a equipa internacional, a equipa nacional (sudaneses) e também uma parte significativa em que os próprios refugiados fazem parte das atividades do projecto.

Um desses refugiados, que já tinha trabalhado com MSF do outro lado da fronteira, no Sudão de Sul, assume um papel importante na resposta médica do projecto, sendo um apoio importante para tudo o que desenvolvemos no campo. Em reunião de equipa, e depois de várias horas de discussão, decidimos continuar esse trabalho no dia seguinte.

Afinal, a equipa internacional e nacional terá ainda de se deslocar durante a luz do dia (segundo os nossos protocolos de segurança) para as bases MSF que se encontram fora do campo, a uma hora de viagem. Ali teremos condições para continuar a trabalhar e descansar adequadamente.

Para outros membros da equipa a viagem é apenas para ali mesmo, até uma das tendas no campo, habitada por várias pessoas da mesma familia. Não deixa de ser um pouco desconcertante que, partilhando a mesma condição profissional dentro da mesma equipa, tenhamos entre todos condições de vida tão díspares.

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