Moçambique: atenção especial às crianças HIV-positivo

Médica brasileira fala sobre os esforços voltados para oferecer tratamento e acompanhamento aos pequenos

Moçambique: atenção especial às crianças HIV-positivo

21/10/2016 – Mais um dia de trabalho na unidade sanitária de Munhava, bairro de Beira, em Moçambique. Logo cedo fiquei um pouco assustada com o número de pessoas que aguardavam o atendimento – mais de 200, para os diversos serviços.

De novo, atendo junto com o técnico de medicina de Médicos Sem Fronteiras (MSF), que trabalha na unidade apoiando o atendimento às pessoas portadoras de HIV. Até o fim do turno de trabalho, que aqui é por volta das 14h, tínhamos atendido cerca de 18 pessoas.

Atendo uma mulher de 31 anos de idade, professora, grávida de seis meses de gêmeos. Ela relata que já faz o tratamento antirretroviral (Tarv) há cerca de quatro anos, desde que descobriu ser portadora do vírus do HIV. Quando recebeu o diagnóstico estava muito doente e esteve internada no hospital por vários dias com diarreia e herpes. Quando perguntei se era casada, disse que tinha um namorado na ocasião que adoeceu, e que ele havia partido quando soube que ela era HIV-positivo. Ela conta que foi estigmatizada pela família do namorado, e isso lhe causou uma grave depressão. Agora ela está melhor, mais ainda toma medicamentos. No momento, tem um namorado que a apoia, e que é HIV-negativo. Como tem seguido bem o tratamento, sua carga viral (quantidade de vírus circulante no organismo) está indetectável*. Contou que se preocupou em escolher datas em que estava mais fértil para ter relações sexuais sem preservativos e conseguir engravidar. Diz que ela e o namorado estão felizes com a gravidez e que não vão querer ter mais filhos.

Qualquer gestante HIV-positivo pode passar o vírus para seu filho. Porém, quando a carga viral está indetectável, a mãe toma os medicamentos corretamente, dá à luz no hospital para a criança também receber os medicamentos, e as chances de a criança ser contaminada com o HIV são muito baixas. Infelizmente, aqui em Moçambique a transmissão vertical (de mãe para filho) é uma realidade. Há muitas crianças em tratamento com antirretrovirais, mas é sabido que muitas morrem antes de iniciar o tratamento.

Atendo minha primeira criança para começar o Tarv: Amélia**, de 9 anos de idade. Veio com o avô que disse criar mais dois netos, imãos da Amélia, um mais novo, de 7 anos de idade, que ainda não foi testado, e outro mais velho, de 13 anos de idade, que já fez o teste para o HIV e é negativo. Ele nos contou que a mãe das crianças, sua filha, faleceu de Aids em outra província, assim como seu marido. As crianças ficaram com outros parentes até ele poder reuní-las aqui em Beira. Em Moçambique, existem mais de 1,8 milhão de órfãos; 600 mil destas crianças são filhas de pais que morreram de Aids, segundos dados o Unicef.

Amélia está bem de saúde, apenas seu peso está um pouco abaixo para sua idade. Ela presta uma atenção respeitosa a tudo o que se fala. As crianças aqui, em sua maioria, são muito educadas e nunca  interrompem conversas dos adultos. Quando pergunto a ela sobre a escola, primeiramente ela olha para o avô pedindo sua autorização. Só aí me conta que está na terceira série, que gosta de estudar e quer ser professora. Fico feliz em começar o tratamento com ela e me surge a ideia de começar a marcar todas as crianças que tomam antirretrovirais para um mesmo dia, a fim de formar um grupo. Vou tentar fazer com que as crianças mais velhas expliquem para as mais novas sobre a doença e a importância de se tomar a medicação. Amélia tem que ter a chance de ter um futuro, e todos nós temos a obrigação de ajudá-la.

*Quando o vírus está bem suprimido e o tratamento está evoluindo com força total, a carga viral da pessoa é considerada ‘indetectável’. Nesse caso, torna-se muito menos provável a transmissão do vírus pelo paciente.

**Nome fictício.
 

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