Moçambique: uma dor que traz alguma esperança

Médica brasileira acompanha sessão de aconselhamento de um casal vivendo com HIV em Beira, Moçambique

Moçambique: uma dor que traz alguma esperança

Sempre que posso, vou assistir a uma sessão de aconselhamento para pessoas que acabaram de saber que são portadoras do vírus HIV ou para aqueles que já começaram o tratamento antirretroviral (Tarv) em um dos centros de saúde apoiados pelos Médicos Sem Fronteiras aqui em Beira, em Moçambique.

Era uma sessão para um casal, Paulo e Esmeralda. Ele com 34 anos, policial e ela um pouco mais nova, trabalha como secretária. A aparência dele era muito boa, alto e saudável. Ela, muito magra, com algumas lesões na cabeça e com ar muito triste e cansada.

O marido tinha sido convidado a participar da sessão, pois a mulher recentemente havia testado positivo para o HIV, e iria começar o tratamento. Nosso conselheiro, Gabriel, pede para contarem um pouco sobre eles. Paulo, muito extrovertido e bem articulado, disse que moravam em outra província. Contou que ele tinha vindo para Beira há uns três anos, desde que começou a trabalhar como policial, e que a mulher tinha ficado na casa de familiares com a filha de três anos. Esmeralda só recentemente largou o trabalho e veio com a filha se juntar ao marido. Gabriel pergunta se eles entenderam o motivo de estarem ali, e ele responde que sim. Paulo diz que a esposa já chegou doente, com muitas feridas na cabeça. Conta que eles tinham ido por três vezes a outros centros de saúde, foram atendidos, tinham usado os medicamentos, mas Esmeralda estava sempre piorando e perdendo peso. Quando chegou a este centro de saúde fez o teste para HIV e deu positivo.

Pergunto ao marido se ele também já fez o teste para HIV. Paulo respondeu que sim, há cerca de dois anos, pois ficou doente, perdendo peso e com muita tosse. Um tio o levou, à época, até aquele mesmo centro de saúde, onde ele foi diagnosticado com tuberculose. Disse que completou o tratamento e que ainda mantém a medicação antirretroviral, pois também tem HIV. Um pouco sem graça, Paulo tira do bolso o cartão de identificação que os centros de saúde dão às pessoas soropositivas. Peço para pegarem o processo clínico dele e comprovo que ele toma os antirretrovirais há mais de dois anos sem interrupção e tinha ganhado 20 kg neste período. Estava fazendo o seu tratamento corretamente, mas, por medo, não tinha contado nada à esposa. O conselheiro segue dando as orientações sobre como tomar os medicamentos.

Olho para Esmeralda e vejo uma mulher muito fragilizada e em intenso sofrimento, que para mim não vinha das feridas na cabeça. Peço para que ela fale um pouco, pergunto sobre a filha do casal e se tem alguma dúvida. Ela responde que entendeu as orientações dadas e que a criança está bem de saúde. Pergunto se ela já tinha feito esse teste antes, e ela confirma que fez quando estava grávida, há cerca de quatro anos, com resultado negativo.

Fiquei olhando para aquele casal, e percebi o quanto ainda é preciso melhorar para termos uma geração livre da Aids: maridos que escondem das esposas que têm HIV, pessoas infectadas que procuram serviços de saúde e não fazem o teste e homens e mulheres que têm relação sexual sem preservativo. Com medo do estigma e do preconceito muitas pessoas não querem fazer o teste para HIV, com exceção das mulheres grávidas e dos doentes. Para muitos, a doença já está tão avançada que não há tempo para a medicação agir.

Paulo e Esmeralda, marido e mulher, ambos estavam sentados juntos, mas pareciam muito distantes e diferentes. Tento animar Esmeralda, dizendo que ela também vai ficar bem, como Paulo, depois que começar a tomar os medicamentos. Ela me olha e, sem dizer palavra alguma, me conta toda a sua dor: está doente, longe da família, com um marido que escondeu dela que estava doente, sem emprego e morando em uma cidade onde não conhece ninguém. Eu entendo o seu olhar, seguro sua mão e neste toque digo: “Não desanime, você vai ficar bem e recuperar sua saúde, como Paulo recuperou a dele. Sua filha precisa de você, e você pode contar conosco”. Acredito que entendeu, pois a caminho da farmácia para pegar seus medicamentos, despediu-se com um olhar que, para além da dor, transmitiu a mim um pouquinho de esperança.
 

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