Muita vida, e também um tanto de morte

Batangafo, República Centro-Africana. 2 de setembro de 2013

O relógio que eu levava no pulso parou há algumas semanas, mas os ponteiros devem seguir girando, porque o tempo já bate quase três meses desde que cheguei aqui em Batangafo, marcando a metade do tempo que ficarei. Ainda distante, a perspectiva do momento de partida já me faz pensar em como poderei deixar esta terra.

Muito se passou, muita, muita vida, mas também um tanto de morte. Trabalhar em um projeto de ajuda humanitária é, de alguma forma, acostumar-se um pouco mais com a morte, na medida em que o humano em nós – e nossa vontade incrível de viver, e nossa revolta com a morte – o permite. A morte é sempre injusta, mas ela é mais injusta quando chega às quatro horas de uma tarde de sábado para uma vida, ainda sem nome, que acabava de começar. Ela é mais injusta quando a médica internacional sente culpa por ter saído por 15 minutos para almoçar. É mais injusta quando não seria morte em tantos outros cantos do mundo, bem fornidos de medicamentos, equipamentos, água tratada.

A morte é sempre injusta, mas é menos injusta quando há vida, vida pulsante, resistindo para ser. E a vida é sempre vida, mas é mais vida quando nasce, dupla, nas mãos de um logista, no chão de um hard-top a caminho do hospital, e já nasce abrindo os olhos e sentindo o mundo. As médicas internacionais dizem que, aqui, muito antes do que estamos acostumados no mundo ocidental, as crianças interagem, andam, falam, e logo vemos pequenos seres de não mais de dois anos andando aparentemente sozinhos pelas ruas da vila, e aprendendo cedo a nos chamar “Monjous!” e a nos estender a mão quando nos veem. Do ponto de vista locomotor, isso, as médicas dizem, está muito ligado ao fato de serem carregados nas costas das mães, atados com panos às suas cinturas, desde as primeiras semanas de vida. Vão, assim, sentindo e vivendo o balançar das cadeiras do andar humano desde muito cedo, e desenvolvem o senso de locomoção. E lá vão eles, pequeninos, caminhando pela vida – pelo menos até que um novo golpe de estado, uma nova facção rebelde, um novo acerto de contas, uma nova malária, uma nova desrazão qualquer lhes interrompa o caminhar. E é isso que, infelizmente, seguimos assistindo aqui – uma onda continuada de violência, que (não) se justifica por poder, por preconceito, por medo. No último fim de semana, foi a vez de uma família local ser vítima da vingança aleatória e da vontade de aterrorizar; Diane, de dois anos, e sua irmã gêmea Vivianne estavam em nosso programa nutricional. Agora Diane, vida que mal começa, está internada no hospital, já sem seu pai, sua mãe e sua irmã.

Trabalhar em um projeto de ajuda humanitária é transitar entre problemas de tamanhos diversos de um minuto a outro, todos para tentar amenizar o problema enorme que é a falta de cuidados médicos de qualidade em tantos cantos do mundo, em contextos tão instáveis. É ter reuniões quase cotidianas para avaliar a situação de segurança, sabendo que, no pior dos casos, o mais provável é que um avião seguro nos leve a nós, profissionais internacionais, em segurança, para algum lugar seguro, e não sentir exatamente alívio ao sabê-lo – porque sabemos também que será deixar para trás a Lily, nossa vizinha de três anos que, esperta, nos saúda todos os dias e repete o que dizemos em francês, espanhol e sängö; é deixar a Salomé, a bela costureira que vive quase em frente ao escritório e nos faz roupas belíssimas com tecidos africanos, trabalhando apesar do seu barrigão de oito meses e das malárias que já teve e às quais, graças a MSF, resistiu. Trabalhar em um projeto de ajuda humanitária é conhecer gente, e aprender com gente. E tentar, de todas as maneiras, fazer algo pela gente.

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