No primeiro dia de Haiti, a primeira cirurgia

Cirurgiã vascular brasileira fala sobre suas impressões depois de uma semana no país

20/11/2015 – Esperei bastante tempo para conseguir conciliar a minha vida no Brasil e a participação em um projeto de MSF, mas finalmente cheguei ao Haiti. No aeroporto, o sentimento era uma mistura de medo e ansiedade. Chegar sem conhecer ninguém e sem ter a mínima ideia de como chegar na casa onde você vai ficar dá um frio na barriga. Mas esse frio vai embora no momento em que você vê o motorista com a plaquinha “MSF”. Que alívio.

O primeiro marco ao chegar em Porto Príncipe foi o trânsito. Caos por toda parte. Qualquer viagem de carro, por dentro ou por fora da cidade, é uma aventura. Na área do hospital, em Tabarre, não existem sinais ou faixas de trânsito, nem para pedestres nem para carros ou tap-taps (o carro com caçamba que é usado aqui como transporte coletivo). Com exceção das vias principais, as ruas são extremamente estreitas, sem asfalto e com pouca ou nenhuma calçada. Buracos por toda parte. Um verdadeiro rali. Os carros se jogam uns nos outros, e parece que sempre vão se bater. Pedestres não têm vez. As motos, todas com uma garupa estendida na qual cabem pelo menos três pessoas confortavelmente, quando não são quatro ou cinco, andam em qualquer lugar. Não é à toa que grande parte dos traumas que são recebidos no hospital em Nap Kenbe são resultado de acidentes de trânsito.

Outra parte dos traumas são resultantes de projétil de arma de fogo. O centro da cidade, chamada Cité Soleil (Cidade do Sol) é palco frequente de confrontos entre gangues locais e, além disso, estamos em época de eleições e, por isso, as manifestações são frequentes. No rádio, o locutor avisa aos seus ouvintes que, em caso de necessidade, eles devem se dirigir a um hospital de MSF. São quatro em Porto Príncipe: uma unidade de trauma em Tabarre, uma de emergência em Martissant, uma maternidade em Delmas e uma unidade de para tratamento de queimados próximo de Cité Soleil. Existem outros hospitais na cidade, mas alguns não têm recursos materiais ou pessoal suficiente. Além disso, a maior parte deles não oferece serviços totalmente gratuitos, como os hospitais de MSF. Por isso, a população acaba nos procurando primeiro.

Depois de todo o dia de reuniões sobre segurança, saúde, convivência com os profissionais nacionais e internacionais, comportamento, trabalho no hospital, entre outros, finalmente cheguei à casa em que vou ficar pelos próximos 30 dias. O lugar é ótimo e super bem-cuidado.

No dia seguinte, já tive o meu primeiro contato com o hospital e os profissionais locais. As pessoas são extremamente simpáticas e solícitas, mesmo quando não falamos nem uma vírgula na mesma língua. Nessa hora o tradutor (temos dois) está sempre lá para me salvar. Sou cirurgiã vascular e tive o meu primeiro paciente dessa especialidade já no primeiro dia. Mas nunca é só um, pois se você não está com um paciente seu, sempre há mais coisa para fazer. Tive muitas cirurgias vindas da cirurgia geral, ortopedia e da plástica; nessas horas, você sempre acaba aprendendo alguma coisa. A intenção de trazer um cirurgião vascular a Tabarre é, principalmente, orientar a conduta dos cirurgiões gerais locais. Isso porque no Haiti só existem três (isso mesmo, TRÊS) cirurgiões vasculares habilitados e que tiveram que fazer suas especializações fora do país, pois não há programa de residência médica nessa especialidade lá. Os cirurgiões vasculares locais nem sempre estão disponíveis quando o hospital precisa, pois a quantidade de trabalho é grande, e isso pode significar a perda de um membro ou a morte de um paciente grave. Da mesma forma, existem em torno de 30 (trinta) ortopedistas no país, e o número está aumentando, já que existem programas de residência e que, inclusive, envolvem períodos de treinamento em Tabarre.

A primeira semana foi de novidades em relação a tudo. Conheci os profissionais internacionais e vi que são de toda a parte do mundo (temos belga, italiano, francês, egípcio, palestino, americano, camaronês, marfinês, filipino, venezuelano, australiano, austríaco e brasileiro). À noite, quando todos nos encontramos após o dia de trabalho, parece a Torre de Babel: quase todos falam inglês e grande parte francês, mas nem todos são fluentes e, por isso, durante as conversas você acaba ouvindo três línguas diferentes na mesma frase. E acaba que todo mundo se entende. Como pode?

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