O começo dos trabalhos no Haiti

No dia 2 de fevereiro de 2015, completei 28 anos de vida e fez um mês que deixei o Rio de Janeiro rumo ao Haiti. Após ter esperado por esse momento por quase dois anos, hoje posso assegurar que foi o melhor presente que a vida me deu.

Estou encantada com o país e principalmente com o povo haitiano. Já me sinto em casa com eles, que estão sempre de bom humor e dispostos a ajudar. Trabalham duro e mesmo quando estão sob pressão não perdem a doçura no sorriso, que lhes é tão natural.

Estou trabalhando em Porto Príncipe, capital do país. Como a equipe que coordena os projetos geralmente mora na capital, aqui tenho a vantagem de tê-los sempre perto e bem presentes no nosso dia a dia.

Cheguei no dia 3 de janeiro, em uma manhã de sábado, e fui direto para o escritório da coordenação participar de minhas primeiras reuniões de briefing, momento em que se aprende sobre o projeto, sobre a atuação de MSF por aqui, as regras de segurança que devem ser seguidas e tudo mais. Fui muito bem recebida e todos acharam superinteressante eu ter vindo do escritório do Brasil. 

Na 2ª feira comecei o trabalho no hospital de Tabarre, que é 100% mantido por MSF e todo estruturado em contêineres. Ele é imenso e parece não ter fim! São mais de 420 funcionários, sendo que somos só 12 profissionais estrangeiros – a grande maioria é de profissionais nacionais. O foco do hospital é em emergências ortopédicas e trauma. A estrutura é referência em cirurgia e funciona 24 horas por dia. Temos 120 leitos e estamos sempre trabalhando com capacidade total. Os médicos não param; muitas vezes têm que deixar a casa em que estão hospedados para correr ao hospital durante a madrugada ou em dias de repouso. É uma loucura!

O acesso a cuidados de saúde para muitos haitianos é complicado e a necessidade por aqui é bem alta. Em Tabarre, recebemos muitos pacientes vítimas de acidentes de trânsito, o que não é difícil de entender, já que o tráfego é intenso e as estradas são ruins, basicamente sem regras sendo aplicadas. Saímos de casa para o hospital às 7 da manhã e vemos muitas crianças bem pequenas indo à escola em uma espécie de moto-táxi, uma das poucas formas que os pais têm de garantir a ida das crianças, mas muitas delas, infelizmente, acabam em nossa ala pediátrica.

A instabilidade política e as constantes manifestações populares têm tornado a vida dos haitianos ainda mais difícil. Esses dias, além de violência nas ruas, houve uma greve de transportes públicos e o ritmo na emergência do hospital ficou ainda mais intenso. Todos os nossos funcionários teriam dificuldade para chegar ao hospital, então, organizamos uma força-tarefa envolvendo todos os carros de MSF para buscar as pessoas em pontos estratégicos e garantir que nossos muitos pacientes não ficassem sem cuidados. É lindo ver isso, a dedicação incansável a cada minuto para assegurar que os melhores cuidados estejam disponíveis para os nossos pacientes quando eles mais precisarem. Ontem vi muitas ambulâncias de outros hospitais deixando pacientes mais graves em Tabarre e fiquei pensando sobre o que essas pessoas fariam se não estivéssemos aqui. São aqueles momentos que te enchem da certeza de que você está no lugar certo.

Na administração o ritmo também é intenso. Somos uma equipe de seis pessoas – grande, se comparada às de outros projetos de MSF, justamente pela quantidade de funcionários e a natureza do trabalho do hospital. Tenho aprendido bastante com a minha equipe, que é composta por pessoas muito experientes e que trabalham sem parar. Trabalhando com a área de Recursos Humanos, tenho visto como os haitianos são trabalhadores e muitas vezes estão só esperando uma oportunidade a qual abraçar. E para mim é emocionante ver que muitas vezes nós lhes damos essa oportunidade. Muitos funcionários estão com MSF desde o começo do projeto de Tabarre, ou até mesmo antes, tendo participado de projetos diferentes, e já cresceram bastante conosco. Apesar de sermos uma organização de emergência, que deve sempre se preocupar com o “agora”, nunca deixamos de olhar para o futuro. Investir na carreira de nossos funcionários é uma preocupação para que possam crescer profissionalmente. No Haiti, temos uma pessoa na coordenação encarregada do desenvolvimento profissional dos funcionários nacionais o que tem sido bastante interessante de acompanhar. O movimento de treinamentos e formações é constante. É incrível ver o impacto que temos aqui, quantas pessoas conseguimos alcançar, o bem que fazemos para os nossos pacientes e para os nossos funcionários.

Eu também tenho achado bem impressionante como aqui trabalhamos sempre em equipe: um problema em qualquer área do hospital nunca é um problema do outro e, sim, um problema de todos. Em um sábado à noite, a equipe de logística precisava de apoio na limpeza dos canos do hospital. Fomos todos juntos – as pessoas da coordenação que moram mais longe, os cirurgiões, os administradores, o coordenador local do projeto, todos fazendo exatamente a mesma coisa.

Antes de vir ao Haiti, trabalhei um ano e meio no escritório de MSF-Brasil. Estando aqui, penso nos meus colegas de lá todos os dias. A dedicação incansável de levar adiante a mensagem de MSF por todos os cantos de nosso imenso país, o compromisso de usar sempre da melhor forma os recursos que nos são doados, o cuidado para que nossos doadores estejam sempre bem informados e o investimento nos profissionais que recrutamos para que estejam preparados para oferecer o melhor que podem em sua ida aos projetos. Estando aqui, isso tudo faz ainda mais sentido. Sem nossas equipes de apoio nos escritórios, um projeto desta dimensão jamais iria adiante. Ter vivido essas duas realidades com MSF me faz ver que, na verdade, somos um grande time de 35 mil funcionários ao redor do mundo trabalhando juntos. E que, na realidade, esse trabalho em equipe que vejo aqui e vivi também no Brasil atravessa todas as fronteiras que poderíamos imaginar. Cada dia que passa, tenho mais orgulho de ser Médicos Sem Fronteiras.

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