O que temos é mesmo “do melhor que há”

A logística e especialista em água e saneamento Joana Batista conta sobre a construção de um centro de tratamento de cólera, estruturado pós-ciclone Idai

“É o que há!”. Foram as palavras de Ricardo, coordenador de logística do projeto. “É o que há!”, volta a repetir perante o olhar estupefacto da equipa. Diante de nós estava o terreno onde iríamos montar o centro de tratamento de cólera (CTC). Havia espaços melhores que, entretanto, tinham sido ocupados por outras atividades de outra organização no terreno. Aquele espaço ainda estava completamente alagado, era um rectângulo meio torto, inclinado e nos confins do hospital. Augurava um trabalho tremendo, mas era o que havia e a população vulnerável estava exposta a uma epidemia de cólera.

No dia seguinte, às 7h, e com uma equipa de 15 pessoas da comunidade, de mangas arregaçadas, começámos a drenar o terreno. No meio estava um contentor cheio de material hospitalar que o passar dos anos e as intempéries anuais tinham apodrecido. Tínhamos que o tirar dali. Sem isso seria impossível montar as tendas.

“Esse contentor? Sair daí? Só com uma máquina ou um camião”, diziam uns. “Nada, tem de ser arrastado!”, diziam outros. Teorias havia muitas… Conseguimos partir o cadeado da porta enferrujada. Continha um tuk tuk ambulância avariado, pedaços de objetos de metal: camas, cadeiras… Em equipa e empurrando ao som de um-dois-três tirámos a mota lá de dentro. No hospital de Dondo havia uma empresa de madeira, cujos serviços de máquinas tinham sido contratados para agilizar a limpeza do espaço. Falei com o senhor José, responsável pelo serviço, que se disponibilizou imediatamente. A retro-escavadora, com um terço do tamanho do contentor não dava crédito de que fosse a maneira mais eficaz; além disso, corria-se o risco de ficar atolada no terreno já sem água mas ainda barrento.

Mas era o que havia… mais uma vez. A pá da máquina por baixo, uma corrente de ferro a passar pelos extremos da estrutura do contentor e enganchada à estrutura da retroescavadora. “Vamos conseguir?”, pergunto ao senhor José, olhando para aquele cenário. “Vamos tentar”, reponde-me assertivamente. Na primeira tentativa falhamos: as correntes estavam largas demais e a retro-escavadora afunda-se. Começa a crescer um nervoso miudinho, trabalhávamos em contra-relógio, os casos de cólera aumentavam a cada dia e tirar aquele traste dali era essencial. Um dos trabalhadores do senhor José, em cima da pá da máquina, ajusta as correntes. E, à segunda puxada, o contentor cede e é tirado dali para fora. Foi um momento de êxtase, que explodiu numa salva de palmas coletiva e em abraços.

Motivada, a equipa MSF continuou a trabalhar sem parar nos dias que se seguiram. Naquele mesmo dia, passadas algumas horas, grande parte do terreno já estava drenado; chegou um camião de areia, necessária para o nivelamento. Definimos o perímetro do CTC. Com sacos de areia levantámos as áreas onde as tendas iriam ser montadas, escavou-se um canal de drenagem ao redor de cada tenda, pois a chuva podia sempre voltar.

No dia seguinte montámos as camas, ligou-se a electricidade, instalou-se o sistema de água e isolou-se um espaço para uma zona limpa. Abrimos o hospital e um dia depois o Governo decretou a epidemia de cólera. Nos quatro dias que se seguiram recebemos mais de 300 pacientes.

Dez dos 15 trabalhadores que ajudaram a construir o terreno do hospital foram contratados e treinados como higienistas: entenderam os protocolos de limpeza, aprenderam a preparar as várias concentrações de cloro e a função de cada uma. Definimos uma função para todos e em pouco tempo tornaram-se os melhores higienistas com quem trabalhei – motivados, atentos aos detalhes e com sentido de missão. E eu, sem dúvida nenhuma, passei do “É o que há” para o “É do melhor que há”.

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