Quando o céu ficou lilás

Parte 1 – 25 de abril de 2011, República Democrática do Congo

A vida nos pequenos povoados é relativamente tranquila: planta-se para comer e também para vender no mercado que acontece aos domingos. As crianças, numerosas, ajudam nas tarefas, vão buscar água no poço, vão à escola. As mães carregam os menores nas costas e assim seguem com seus afazeres. Os pais cortam a madeira para abastecer o fogo que irá cozinhar a comida da família. Mas um dia eles chegam, em bandos, os tais rebeldes. A casa é queimada, a comida roubada, as mulheres estupradas, os homens mortos e as crianças e jovens que podem servir de mão escrava são sequestrados.

Os sobreviventes fogem e carregam o que lhes restou, além de carregar pesadas memórias de todo o horror que viveram e que testemunharam.

E esses são nossos pacientes dentro do programa de Saúde Mental da região de Uélé, ao norte da República Democrática do Congo. No projeto em que estou atualmente, em Doruma (atuo dentro do que chamam psy fly, uma psicóloga “que voa” entre Doruma e Dungu), a identificação de necessidades em dar atenção à Saúde Mental e seguindo a proposta para 2011, nos levou a contratar duas conselheiras, que vem sendo formadas por mim para a execução do trabalho. Em Dungu, a equipe é constituída pela conselheira supervisora, um psicólogo e uma conselheira que sai toda semana com a clínica movel.

Técnicas de escuta permitem dar a melhor resposta aos pacientes que encontram no espaço oferecido a oportunidade de falar do que viveram, de compreender sintomas e de buscar a melhor maneira de retomar suas vidas. As conselheiras passam também a comprender a importancia de seus trabalhos no que diz respeito à dar uma nova direção e um novo sentido às pessoas que as buscam.

Também um grupo de sensibilizadoras identificadas para trabalhar em diferentes áreas do vilarejo divulga na comunidade a existencia do serviço de saúde mental que pode ajudar às vítimas da violencia vivida nos ataques a superar suas feridas emocionais. Como o tema Saúde Mental era algo totalmente novo, as sensibilizadoras conheceram “Dona Boa Saúde Mental” (Madame Bonne Santé Mentale,em francês) e “Dona Sofrimento Mental” (Madame Souffrance Mentale, em francês), personagens que criei para explicar de maneira simples os diferentes estados emocionais, ajudar a identificar alguns sintomas que representam a existência de reações emocionais e para mostrar como cada um reage de maneira diferente a um evento semelhante.

Com a identificação de vítimas recentes refugiadas em um vilarejo à 20Km de distância, onde chegamos depois de uma hora por uma estrada de terra em mal estado cortando a floresta, começamos um programa de emergência em uma tenda montada ao lado do Centro de Saúde local, em fase de reabilitação por parte de MSF.

Considerando o peso das histórias que nos chegam, o trabalho de Saúde Mental na região de Uélé ainda está longe de ter fim, desejando que um dia as pessoas possam viver sem medo de perder sua casa, seus pertences, sua família, sua vida.

Ao fim do dia, eu estou no campound onde vivo e compartilho com um grupo realmente internacional (nosso responsável de terreno vem de Guiné, a referente médica é austríaca, o médico da Costa do Marfim, a enfermeira, suiça, o administrador frances, o logístico americano e eu brasileira, além da equipe congolesa). O belo céu lilas faz ressurgir a idéia de paz.

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