Sete anos de medos, privações e perdas

A psiquiatra Paula Orsi voltou recentemente da Síria, onde trabalhou com MSF, e faz um resumo do que viu no norte do país

Sete anos de medos, privações e perdas

Há pouco mais de um mês, no dia 8 de fevereiro deste ano, desembarquei no Brasil trazendo na bagagem uma das experiências mais marcantes da minha vida. Eu havia passado quatro meses trabalhando com a população síria em um dos projetos que a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) mantém no país que esta semana completou sete anos em guerra. Sou psiquiatra e fui enviada ao norte da Síria com a tarefa de avaliar as condições de saúde mental da população.

O que testemunhei, ainda hoje, enche meus olhos de lágrimas: milhares de pessoas em choque pela recente perda de seus entes queridos, suas casas e seus amigos. Muitos não conseguiram salvar sequer uma fotografia que lhes lembrasse que um dia haviam sido felizes.

Um som abrupto, como o ronco forte de um motor, a queda de um objeto ou mesmo uma movimentação diferente no acampamento, provocavam nas pessoas um reflexo de proteção imediato. Elas se escondiam, o coração acelerava e reviviam a experiência do medo de mais um ataque, de outra bomba. Para muitas delas, o medo havia se tornado patológico.

Encontrei um grande número de mães que carregavam as fotos de seus filhos levados pela guerra, em prantos. Muitas pessoas estavam mergulhadas em uma intensa apatia, não se alimentavam, não conseguiam dormir e manifestavam sinais de catatonia, permanecendo na mesma posição por dias.

Uma dessas pessoas faleceu dois dias depois de eu encontrá-la. Ela entrou em depressão profunda, acreditava que estava morta, quando ainda estava viva. Pessoas anteriormente sãs começaram a desenvolver os mais variados transtornos mentais, alucinações, crises de agressividade, ideações de morte e tentativas de suicídio.

Entre as crianças, o cenário também era desolador. Além dos pesadelos, inseguranças, regressões no desenvolvimento causadas pela exposição à guerra, observei o que considero o mais triste: a banalização da violência. Crianças que nasceram e cresceram na guerra e conheceram apenas esse exemplo de mundo, onde os problemas se resolvem com agressividade, brincavam de guerra, simulavam decapitações, ameaçavam os irmãos de morte e agrediam os próprios pais. A isso se soma o estresse dos cuidadores, impacientes e esgotados e também “contaminados” pela violência.

Diante de tanta demanda, rapidamente estabelecemos um fluxo de atendimento para cuidados psiquiátricos e suporte psicológico, em parceria com outras organizações. Depois que se deixa a Síria não se consegue deixar de acompanhar, com grande pesar, a cada notícia de bombardeio. Volto para casa, mas deixo parte de meu coração com essa população que há sete anos sobrevive entre medo, privações e perdas.

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