Tadjiquistão: o fardo da tuberculose para crianças e adolescentes

Infectologista brasileira detalha os desafios e as recompensas do trabalho com MSF no país

Tadjiquistão: o fardo da tuberculose para crianças e adolescentes

Cheguei a Dushanbe, capital do Tadjiquistão, em maio de 2016 e vou ficar aqui trabalhando com Médicos Sem Fronteiras, por um ano e meio no total.  Antes de vir para cá, eu estava super ansiosa. Tinha muitas dúvidas se eu conseguiria me adaptar a uma cultura que eu pensava ser bastante diferente da nossa, e ainda por cima ficar por mais de um ano. Decidi por aceitar o desafio, e a recepção dos colegas e o apoio tanto da minha equipe quanto dos chefes foram a prova de que acertei!

O nosso projeto é focado no tratamento de crianças e adolescentes com um tipo de tuberculose que não se cura com os medicamentos que normalmente usamos. Por isso, essa tuberculose é chamada multirresistente a medicamentos (TB-MDR). A dureza da doença é que um tratamento que seria de seis meses, envolvendo quatro tipos de antibiótico, que é como fazemos na grande maioria dos casos no Brasil, passa a durar um ano e meio ou até dois anos. E, pior: quem está infectado com a tuberculose multirresistente precisa tomar de 6 a 8 tipos diferentes de antibiótico, incluindo injeções todos os dias.

Essa situação já é complicada quando acontece com um adulto; imagine quando é uma criança! Se sentir fraco, ser internado, saber que todas manhãs sentirá a dor das agulhas, tomar vários tipos de medicamentos, ficar enjoado… Isso é bem difícil para esses pequenos pacientes, suas famílias e também para a equipe de saúde.

Para que o tratamento seja um sucesso, é necessário se ter uma visão global da situação, e trabalhar em tudo o que seja possível para amenizar os problemas decorrentes da doença ou do longo tratamento. E é isso que nós de MSF estamos fazendo aqui. Trabalhamos em colaboração com o Ministério da Saúde e o Programa Nacional de Tuberculose e assim fomos capazes de trazer para o país novos medicamentos que funcionam melhor e são melhor tolerados pelos pacientes, mas ainda são caros demais para que o sistema de saúde do país possa fornecer.

Aqui meus dias são super corridos e a semana passa voando! Divido meu tempo visitando os pacientes e guiando as equipes locais na melhor forma de fazer diagnósticos e conduzir o tratamento, além participar das reuniões médicas com as autoridades locais para decidir sobre o tratamento dos pacientes e para identificar as dificuldades que o sistema de saúde local esteja tendo para lidar com a tuberculose multirresistente, e definir como MSF pode ajudar.

Minha maior surpresa ao chegar aqui foi certamente as pessoas! A maneira de se vestir é muito diferente… Os homens geralmente usam terno no dia a dia. As mulheres vestem uma mistura de vestido longo com calça em tecidos bastante alegres e coloridos, e algumas usam o tradicional véu muçulmano. Entretanto, essa estranheza inicial dos costumes locais foi rapidamente substituída pela surpresa em ser imediatamente tão bem acolhida! No meu segundo dia no país, já participei de um casamento! A hospitalidade aqui é imensa! As pessoas são muito generosas e estão prontas a dividir o pouco que têm.

Nosso projeto é voltado para crianças e adolescentes. Para os adultos que são familiares dos nossos pacientes, apenas fornecemos medicamento e assistência, que envolve suporte psicológico, nutricional (fornecemos “cestas básicas” para quem está desnutrido ou em situação social de risco), financeiro (para deslocamento para a consultas ou exames, para fazer raio-x) e técnico (coletamos exames para detecção de efeitos adversos das medicações e aconselhamos os médicos para o melhor tratamento).

Então, a maior dificuldade aqui é ver vários pacientes que ainda não têm acesso ao melhor tratamento. Como médica e ser humano é muito difícil saber que não posso ajudar todas essas pessoas que urgentemente necessitam de uma terapia melhor do que o sistema de saúde pode fornecer, mas que é cara demais. Algumas pessoas me imploraram por um tratamento que eu não tenho o poder de dar, e é muito difícil lidar com isso. Algumas memórias ficarão como fantasmas na minha cabeça, como a moça que não me pediu nada, mas eu pude ver o quão grave era a sua situação. Dia após dia ela parecia mais magra e pálida. Tentei conseguir as medicações que provavelmente poderiam curá-la, mas não estavam disponíveis… Até que um dia não a vi mais no hospital. Tive medo de perguntar o que tinha acontecido com ela, escolhi não saber. E isso acontece com muitas pessoas que estão à espera de medicações que custam de centenas a milhares de dólares e que os países pobres não têm capacidade de comprar. E isso me dá energia para falar sobre o que está acontecendo aqui e em vários outros países – precisamos mudar essa situação!
 

Entretanto, apesar dessas histórias tristes, há as emocionantes histórias de sucesso. Recentemente, iniciamos o tratamento para quatro pessoas de uma mesma família acometida pelo tipo mais resistente de tuberculose (TB-XDR). Quando a equipe do MSF ficou sabendo do caso, a família já sofria há anos com a doença e três pessoas na mesma casa haviam morrido. Eles já não acreditavam mais que fosse possível vencer a tuberculose. Um desses jovens pacientes disse: “meu sonho é poder tomar café com a minha família sem ter que pensar na tuberculose”. Algo tão simples, mas tão difícil! Agora, temos os primeiros resultados mostrando que o novo tratamento está funcionando. A batalha é longa (2 anos!), mas dividir com eles esses resultados positivos e ver o sorriso e alívio nos seus rostos faz tudo valer a pena.

Muitas coisas me fazem feliz aqui… Amo meu trabalho! Me traz imensa satisfação saber que fomos capazes de criar uma boa relação com o Ministério da Saúde, ultrapassando as barreiras culturais: nós, de MSF, entendendo as necessidades locais (que nem sempre são as que imaginamos primeiramente) e as equipes de saúde e autoridades do Tadjiquistão confiando em nosso trabalho e nos permitindo trazer as melhores práticas para o tratamento da tuberculose, criando uma mudança profunda e duradoura que irá persistir mesmo quando não estivermos mais aqui. Posso citar mais coisas: receber o abraço das crianças no hospital que não têm medo do meu jaleco branco; vê-las melhorando dia a dia, ganhando peso, diminuindo a tosse, tendo alta e voltando para suas casas; comunicar que os exames finalmente vieram negativos; dar parabéns pela cura. Realmente vejo a importância do nosso trabalho aqui e fico feliz em poder ajudar, mesmo tendo saudades da família, dos amigos e de poder usar biquíni e ir à praia. :)
 

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