A vida sob os bombardeamentos em Mariupol e um desastre que não cessa

Sasha, oriundo de Mariupol, na Ucrânia, e profissional de longa data da Médicos Sem Fronteiras (MSF), descreve a vida numa cidade cercada e bombardeada pelas forças russas. Por razões de segurança, usa apenas o seu primeiro nome

© Lorenzo Meloni/Magnum Photos

Nasci e vivi toda a minha vida em Mariupol. Estudei, trabalhei e passei bons momentos em Mariupol. E quando fui contratado pela MSF, fiquei muito feliz por estar a fazer um trabalho significativo. A vida era boa em Mariupol.

Mas, do nada, tornou-se num verdadeiro inferno.

No início, era impossível acreditarmos no que estava a acontecer, porque isto simplesmente não devia acontecer no nosso tempo. Não esperávamos uma guerra e não esperávamos bombas. Pensávamos que eram apenas coisas ditas na televisão e que alguém impediria que esta loucura se concretizasse. Quando me apercebi que se estava a tornar real, senti-me doente – tão doente, que passei três dias sem comer.

E no princípio, a vida até parecia mais ou menos normal, apesar de sabermos que tudo estava já longe disso. Mas depois, os bombardeamentos começaram e o nosso mundo, como o conhecíamos, deixou de existir. As nossas vidas ficaram entrelaçadas com as bombas e os mísseis que caíam do céu, destruíndo tudo. Não conseguíamos pensar nem sentir mais nada. Os dias da semana deixaram de ter significado, e eu já nem distinguia se era sexta-feira ou sábado, porque tudo se tornara num longo e arrastado pesadelo. A minha irmã tentou manter a perceção da passagem dos dias, mas para mim era tudo um borrão.

Felizmente, ainda conseguimos doar nos primeiros dias algumas provisões médicas da MSF que tinham sobrado a um serviço de urgências em Mariupol, mas quando a eletricidade e a rede telefónica caíram, deixámos de conseguir contactar com os nossos companheiros e já não podíamos continuar o nosso trabalho. Os bombardeamentos começaram e a situação agravou-se de dia para dia. Os nossos dias passaram a ser uma longa tentativa de sobrevivência, enquanto procurávamos uma saída.

Como é que se consegue descrever a transformação da nossa casa num palco de terror? Apareceram novos cemitérios por toda a cidade, em quase todos os bairros. Até mesmo no pequeno jardim da cresce perto da minha casa, onde as crianças deviam estar a brincar. Como poderá este passado trazer um futuro para as nossas crianças? Como vamos suportar ainda mais dor e tristeza? A cada dia é como perder toda uma vida.

Comoveu-me ver, em Mariupol, tantas pessoas a ajudarem-se mutuamente, sempre prontas a preocuparem-se primeiro com os outros e nunca consigo mesmas. As mães preocupadas com os filhos e os filhos com os pais. Eu preocupava-me com a minha irmã – ela estava tão ansiosa devido aos bombardeamentos que pensei que o coração dela fosse parar. O relógio de fitness dela registava 180 batimentos cardíacos por minuto e afligia-me vê-la assim. Disse-lhe que seria ridículo morrer de medo no meio de tudo isto! Com o tempo, ela foi-se adaptando e, em vez de ficar paralisada pelo medo durante os bombardeamentos, falava-me de todos os esconderijos em que conseguia pensar. No entanto, continuei a estar profundamente preocupado por ela, e era evidente que tinha de a tirar dali.

Mudámo-nos três vezes, para tentar encontrar o sítio mais seguro. Tivemos sorte, pois acabámos por ficar com um grupo de pessoas formidáveis, que agora considero como minha família. A História já provou que a humanidade sobrevive quando as pessoas se juntam e se ajudam. Vi isto com os meus próprios olhos e comoveu-me verdadeiramente.

Fiquei também sensibilizado ao ver o quão corajosas as pessoas eram e conseguiam ser. Lembro-me de uma família que estava a cozinhar na rua, à porta de casa. Havia dois buracos enormes no chão, causados por bombas que tinham atingido outra família uns dias antes, a apenas uns metros da sua fogueira.

Comovia-me ver como as pessoas se agarravam à vida e a tudo aquilo que é bom. Apesar de tudo, decidimos celebrar o Dia Internacional da Mulher, a 8 de março. Chamámos os nossos vizinhos e eles convidaram amigos a juntarem-se. Alguém encontrou uma garrafa de champanhe e outra pessoa até conseguiu fazer um bolo apenas com metade dos ingredientes da receita. Por uns escassos minutos, conseguimos mesmo ouvir um pouco de música. Durante meia hora sentimo-nos realmente a celebrar e soube muito bem estar feliz e rir outra vez. Até gracejámos que este pesadelo ia acabar.

Mas continuou e pareceu que nunca mais acabaria.

Tentávamos partir todos os dias, mas havia tantos rumores sobre o que se passava, que começámos a pensar que isso nunca iria acontecer. Um dia, chegou-nos a informação de que uma caravana estava prestes a partir, então enfiámo-nos no meu carro velho e apressámo-nos para tentar lá chegar. Alertámos todas as pessoas que conseguimos, mas agora encho-me de tristeza sempre que penso naquelas com quem não conseguimos falar. Foi tudo tão rápido e não era possível fazer chamadas, porque não havia rede telefónica.

Durante a partida houve muita confusão e pânico, com carros em movimento em todas as direções. Vimos um carro que transportava tantas pessoas que era impossível contá-las, as suas caras empurradas contra os vidros. Não sei ao certo se conseguiram partir, mas espero que sim. Não tínhamos nenhum mapa e tínhamos receio de nos enganarmos no caminho, mas, não sei bem como, escolhemos o rumo certo e saímos de Mariupol.

À medida que íamos saíndo da cidade, fui-me apercebendo que tudo estava pior do que eu pensara. Dei-me conta de que tive imensa sorte por me ter abrigado numa parte da cidade que foi relativamente poupada, mas conforme avançávamos vi tanta destruição e tristeza. Vimos crateras gigantes entre os blocos de apartamentos, supermercados, instalações médicas e escolas em escombros, vimos até abrigos em ruínas, sítios onde as pessoas pensavam estar seguras.

Por agora nós estamos a salvo, mas não sabemos o que o futuro nos reserva. Quando finalmente tive acesso à internet, fiquei perturbado ao ver as imagens da minha querida cidade em chamas e dos meus concidadãos sob os escombros. Nas notícias, li sobre o bombardeamento do teatro de Mariupol, onde muitas famílias com crianças procuraram abrigo e não consigo encontrar palavras para descrever como isso me faz sentir. Questiono apenas porquê.

Não tivemos alternativa senão deixar tantos entes queridos para trás. Pensar que eles e tantas outras pessoas ainda lá estão é muito difícil de suportar. O meu coração enche-se de mágoa quando penso na minha família. Tentei regressar para resgatá-los, mas fracassei. Agora, não tenho notícias deles.

As pessoas que estão em grupo têm uma maior probabilidade de sobreviver, mas há muitas outras que estão sozinhas. As mais velhas e debilitadas não conseguem andar quilómetros para encontrar água e comida. Como é que vão sobreviver?

Não consigo deixar de pensar numa senhora idosa que encontrámos na rua há duas semanas. Tinha dificuldades a andar e os óculos estavam partidos, pelo que também não conseguia ver muito bem. Estendeu-nos um telemóvel e perguntou se lho podíamos carregar. Tentei fazê-lo com a bateria do carro, mas não resultou. Disse-lhe que a rede telefónica tinha caído e que mesmo com o telemóvel carregado não conseguiria contactar ninguém.

“Eu sei que não vou conseguir ligar a ninguém”, disse-nos ela. “Mas, quem sabe, um dia alguém me quererá ligar”. Apercebi-me de que estava por sua conta e que todas as suas esperanças residiam naquele telemóvel. Talvez alguém lhe esteja a tentar ligar. Talvez a minha família me esteja a tentar ligar a mim. Não sabemos.

Já passou um mês desde que este pesadelo começou e a situação não cessa de piorar. A cada dia que passa, morrem pessoas em Mariupol devido aos bombardeamentos e à falta de coisas básicas – comida, água, cuidados de saúde. Civis inocentes têm de enfrentar privações e condições de vida insuportáveis todos os dias, a todas as horas, a todos os minutos. Apenas uma pequena porção conseguiu escapar, mas um grande número de pessoas continua ainda na cidade, escondidas em edifícios destruídos, ou em caves de casas em ruínas, sem qualquer tipo de apoio externo.

Por que é que tudo isto acontece a pessoas inocentes? Até que ponto é que a humanidade vai permitir que este desastre continue?

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