A crise esquecida na República Centro-Africana

A República Centro-Africana enfrenta uma crise de saúde há décadas, sob a sombra de um violento conflito. Num país com 5.5 milhões de pessoas, o acesso a cuidados médicos é quase impossível e a esperança média de vida é de 54 anos. Durante anos, a Médicos Sem Fronteiras (MSF) apelou repetidamente à ação de governos e entidades humanitárias. Porém, a situação só tem piorado, e as equipas da MSF e as comunidades continuam a questionar-se: Onde está toda a gente?

Crise esquecida RCA
© Julien Dewarichet

1.

Guy, 4 anos, chegou ao hospital em coma. Sofre de diabetes tipo 1 e necessita de injeções regulares de insulina. Os pais percorreram centenas de quilómetros e trouxeram-no de Bao para a cidade de Bangassou, porque os hospitais perto de casa não tinham insulina.

 

2.

René, recém-nascido, foi internado pela terceira vez nos cuidados intensivos. Está gravemente desnutrido – uma das muitas consequências do encerramento dos programas de prevenção de desnutrição em Bangassou.

 

3.

Fanny, 20 anos, foi referenciada de Bakouma, a 130 quilómetros de distância, porque a equipa médica da instalação de saúde não tinha os medicamentos e o equipamento necessário para tratar a ferida que tem nas costas.

 

Galinhas vagueiam pelos corredores do hospital

“Quando aqui cheguei, senti que estava a cair no vazio”, conta Louis-Marie Sabio, sentado num pátio do hospital secundário de Bakouma, Nzacko, uma área marcada pela instabilidade no Noroeste da prefeitura de Mbomou. No início de 2023, Louis-Marie – que já trabalhou com a MSF na cidade de Bangassou – passou a fazer parte da administração deste hospital, onde se tratam complicações cirúrgicas.

Louis-Maria - Crise esquecida RCA
Louis-Marie Sabio, diretor do hospital secundário de Bakouma. © Julien Dewarichet

Esta instalação não teve um único médico a trabalhar nos últimos 12 anos”, avança. “O hospital era gerido por um assistente de saúde. Quer dizer… quando digo ‘hospital’ é um esticão. Não há eletricidade, ambulâncias ou colchões nas camas. Quando aqui cheguei, nem havia termómetros, medidores de tensão arterial, oxímetros de pulso, ou glicosímetros. A farmácia estava totalmente vazia, também.”

Supostamente, um hospital secundário, como o hospital de Bakouma, providencia cuidados mais avançados que um centro de saúde, mas Louis-Marie mal consegue prestar os serviços mais básicos. A instalação está vazia e o silêncio pesa. Apesar da dimensão da estrutura, há pouco mais de 10 pacientes a receber tratamento.

 

No outro dia, tive de transferir um bebé para Bangassou de mota, já que não temos ambulância. Não conseguimos estabilizá-lo e morreu a poucos quilómetros do hospital, na mota.” – Louis-Marie Sabio.

 

Há galinhas a vaguear pelos corredores: também elas passam pelas balanças partidas e mesas ferrugentas – uma marca flagrante da falta de apoio desta instalação, que não recebe muito mais do que as vacinas providenciadas pela MSF. Qualquer paciente que aqui chegue sabe que, apesar da vontade do Dr. Sabio, a falta de recursos humanos e materiais significa que não encontrarão a assistência médica de que necessitam.

“Somos 18 aqui no hospital, mas eu sou o único com formação médica”, frisa o jovem médico Louis-Marie. “Porque temos recursos tão limitados, não conseguimos cumprir os requisitos básicos de um hospital. Não há eletricidade, o que nos impede de realizar ecografias e raios-x. A sala de cirurgias está esvaziada de equipamentos: é alimentada por um pequeno painel solar, que serve para dar energia a apenas duas lâmpadas. Quando os pacientes precisam de medicamentos, temos de enviá-los para o mercado local, na esperança de encontrarem algo.”

Camas hospital - crise esquecida RCA
Pormenor das camas sem colchões no hospital de Bakouma. © Julien Dewarichet

 

Uma grave situação de saúde

Esta imagem de uma instalação de saúde sem provisões, profissionais e recursos é replicada em muitos outros lugares na República Centro-Africana. Conforme o recente relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde, menos de metade das unidades de saúde do país estão totalmente operacionais, e a proporção de médicos para pessoas é extremamente baixa, com apenas 0.6 médicos por cada 10 000 pessoas – uma das taxas mais baixas do mundo.

 

Tem de se fazer muito mais para prestar apoio às pessoas. Onde está toda a gente? Não podemos e não devemos habituar-nos a ver a República Centro-Africana no topo da tabela das piores crises humanitárias.” – René Colgo, coordenador do projeto da MSF na República Centro-Africana.

 

Décadas de instabilidade política e de violência entre grupos armados impulsionaram uma enorme crise, que deixou mais de metade dos seis milhões de cidadãos do país a necessitar de ajuda humanitária. A esperança média de vida à nascença é de apenas 54 anos; as grávidas enfrentam um risco substancial de morte, ou de doenças graves, devido à escassez de ginecologistas; as taxas de mortalidade infantil são das mais altas do mundo.

 

“Muitas vezes, sentimo-nos sozinhos”

Pelé Kotho-Gawe, enfermeiro responsável das atividades móveis em Bangassou, durante uma visita ao posto de saúde de Baliguini. © Julien Dewarichet

A MSF tem quase 2 800 profissionais na República Centro-Africana (RCA), sendo este um dos maiores projetos da organização nos 75 países onde trabalha. A maioria foi contratada localmente, e todos trabalham incansavelmente para prestar apoio às autoridades de saúde e às comunidades, reforçando o acesso a cuidados médicos em algumas áreas mais isoladas.

Na prefeitura de Mbomou, por exemplo, a MSF fornece assistência em 15 instalações de saúde: um espectro de apoio que vai de pequenos postos de saúde até grandes hospitais regionais, como o hospital universitário de Bangassou – a única instalação especializada num território do tamanho da Grécia.

Inicialmente planeados como uma resposta de emergência à vaga de violência que assolou o país em 2013-2014, os projetos da MSF nesta área alcançam agora uma porção significativa do território da prefeitura. Através de equipas móveis, a MSF providencia vacinas e medicamentos essenciais a instalações de saúde locais, que podem ajudar a tratar doenças infantis comuns na região, como a malária, diarreia e infeções respiratórias.

As equipas desenvolvem também formações para profissionais de saúde e realizam encaminhamentos de pacientes em estado grave para o hospital de Bangassou.

“O nosso objetivo é reforçar a prestação de cuidados médicos a todos os níveis e reduzir a mortalidade na área”, explica o enfermeiro responsável das atividades móveis da MSF em Bangassou, Pelé Kotho-Gawe.

Porém, numa altura de profunda crise económica e de saúde, estas atividades não são suficiente para responder a todas as necessidades. A falta de água potável e de eletricidade nas instalações de saúde criam ainda mais desafios, aos quais a MSF não consegue responder sozinha.

“Somos confrontados com realidades que fazem com que este trabalho pareça interminável”, sublinha Kotho-Gawe. “Podemos tratar crianças com diarreia, mas se ninguém cavar poços ou furos, o problema persistirá, pois as pessoas continuarão a beber águas não-tratadas.

“É o mesmo para a malária: visitamos centros de saúde onde 90 por cento dos testes dão positivo para a doença, e providenciamos cuidados sem custos às crianças, mas ninguém nesta área está empenhado em aplicar medidas preventivas, ou em distribuir redes mosquiteiras”, acrescenta.

“Às vezes, outras organizações prestam apoio, mas não com a devida frequência, e sentimo-nos sozinhos a enfrentar estes desafios. A MSF não pode, naturalmente, enfrentar tudo sozinha.”

O filho de Annie Guemba teve de ser internado pela terceira vez no hospital de Bangassou com desnutrição aguda. © Julien Dewarichet

 

Hospital de Bangassou, um reflexo da atual crise

 

Às vezes, tenho de encaminhar pacientes para aqui sem conseguir sequer estabilizá-los, sem quaisquer garantias de que sobreviverão” – Louis-Marie Sabio, médico no Hospital Secundário de Bakouma.

 

Sempre que as equipas da MSF viajam pela região, este sentimento de solidão aprofunda-se. O apoio das  equipas da organização não é suficiente, e o hospital de Bangassou é um puro reflexo disso.

A estrutura é a última esperança para pacientes com complicações que não podem ser tratadas noutros lugares. Por outras palavras, as pessoas procuram cuidados no hospital de Bangassou dia e noite, viajando centenas de quilómetros de mota em terrenos acidentados, porque nem tratamento, nem medicamentos, estão disponíveis noutro sítio.

Louis-Marie Sabio visitou o hospital de Bangassou para uma sessão de formação da MSF. “Já viram o estado da minha instalação. Às vezes, tenho de encaminhar pacientes para aqui sem conseguir sequer estabilizá-los, sem quaisquer garantias de que sobreviverão. No outro dia, tive de transferir um bebé para Bangassou de mota, já que não temos ambulância. Não conseguimos estabilizá-lo e morreu a poucos quilómetros de lá, na mota.”

 

Onde está toda a gente?

Interior do hospital regional de Bangassou, onde a MSF presta apoio. © Julien Dewarichet

“A situação na RCA é chocante, mas estou igualmente alarmado pela falta de atenção internacional”, sublinha o coordenador do projeto da MSF na República Centro-Africana, René Colgo.

“Esta crise continua desconhecida para o resto do mundo, apesar dos enormes desafios enfrentados pelas pessoas. O financiamento humanitário não é suficiente para responder às necessidades. Por causa da insegurança, ou de constrangimentos logísticos, as organizações nem sempre estão presentes nas áreas onde as necessidades são maiores. Tem de se fazer muito mais para prestar apoio às pessoas. Onde está toda a gente? Não podemos e não devemos habituar-nos a ver a República Centro-Africana no topo da tabela das piores crises humanitárias.”

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