Violência em Ippy é espelho da realidade de muitas pessoas na RCA

A região de Ippy, na República Centro-Africana, foi novamente palco de confrontos entre grupos rebeldes e tropas governamentais, forçando outra vez a população a deslocar-se

Resposta imediata da MSF a pessoas deslocadas pela violência em Ippy
© Seigneur Yves Wilikoesse/MSF

Longe do foco mediático internacional, a violência armada que assola muitas partes da República Centro-Africana continua impetuosamente, forçando comunidades inteiras a fugir de casa e a deslocarem-se em direção à morte e ao desespero.

No início deste ano, a região de Ippy, que fica no centro do país, foi novamente palco de confrontos entre grupos rebeldes e tropas governamentais apoiadas por forças aliadas.

Para escapar à violência, milhares de pessoas fugiram apressadamente das suas aldeias rurais para a vila de Ippy e para os campos que alojam pessoas deslocadas internamente, os quais foram surgindo nos últimos anos e meses.

“Quando a violência eclodiu, fugimos para uma aldeia próxima, mas essa também foi atacada, e os meus três filhos foram mortos”, conta Jeremy, que se deslocou com a mulher e filhos para o campo de Yetomane, em Ippy, a 40 quilómetros de distância de onde era a sua casa. “Enterrámo-los numa vala comum e partimos outra vez. Desde então, não tenho conseguido dormir.”

Olga e Jean-Claude percorreram quase 140 quilómetros com os seis filhos para chegarem ao campo para pessoas deslocadas de Bogouyo. “Caminhámos durante uma semana, junto com idosos, pessoas doentes e crianças”, sublinham. “Alguns morreram no caminho, e tivemos de abandonar os corpos no mato sem poder enterrá-los. Ficaram cobertos apenas com erva. As crianças viram tudo. Como é que vão esquecer estas imagens?”

A resposta imediata da MSF

A MSF enviou em fevereiro uma equipa de emergência para Ippy a fim de prestar apoio médico a pessoas vulneráveis como Jeremy, Olga e Jean-Claude.

“Já que as necessidades essenciais das pessoas não estavam a ser asseguradas nos campos, a nossa primeira prioridade foi conter o risco de doenças relacionadas com a higiene e a água”, explica o coordenador-geral da MSF na República Centro-Africana, René Colgo. “Na fase de emergência, construímos 269 latrinas, instalámos pontos de água e distribuímos sabão e recipientes”, acrescenta.

A instalação dos pontos de água aumentou o acesso a água potável de apenas 1,6 litro para 15 litros por pessoa por dia. Quando outras organizações chegaram e assumiram a gestão destes meios, as equipas da MSF concentraram-se em apoiar duas unidades de saúde locais.

“Havia serviços de saúde básicos para as pessoas deslocadas, mas os casos médicos mais complexos necessitavam de melhores cuidados, especialmente as crianças e grávidas, que correm sempre mais riscos”, frisa René Colgo. “Por isso, fornecemos equipamentos e enviámos profissionais para reforçar os serviços pediátricos e neonatais, o acompanhamento de complicações na gravidez, e para podermos encaminhar pacientes para estas unidades.”

Em apenas dois meses, 381 crianças foram hospitalizadas com o apoio da MSF, a maior parte delas com malária em estado grave. As equipas providenciaram também cuidados médicos a 31 mulheres com complicações na gravidez, executaram 20 cesarianas e encaminharam uma dúzia de pacientes críticos para Bambari.

No início de maio, arrancou também uma campanha de vacinação da MSF contra doenças como a malária, poliomielite, febre amarela, meningite e tuberculose, em que foram inoculadas cerca de 20 000 crianças com menos de 10 anos, assim como 9 000 mulheres grávidas. A campanha, lançada na vila de Ippy, inclui também imunização contra a COVID-19 e continuará até julho.

Necessidades em Ippy continuam maciças

A situação está agora ligeiramente mais calma em Ippy e as pessoas deslocadas começam a regressar às suas aldeias ou a estabelecer-se na vila. Mas, numa área marcada por anos de insegurança crónica e deslocações, as pessoas permanecem numa situação difícil e incerta.

“Apesar das pessoas estarem a abandonar os campos, as necessidades continuam prementes nesta área”, afirma o coordenador-geral da MSF na República Centro-Africana. “Em Ippy, muito antes destas últimas vagas de deslocações, o acesso a serviços de saúde e a água potável já era muito limitado. Os eventos recentes agravaram ainda mais a situação. Há muitas pessoas em pobreza profunda que não têm meios para pagar comida nem serviços de saúde. Algumas estão traumatizadas pela violência física e sexual que lhes foi infligida durante o percurso ou pelas condições precárias existentes nos campos. Um apoio contínuo é claramente necessário”, insta ainda René Colgo.

“Somos pastores, mas perdemos todos os animais quando fugimos da aldeia”, conta André, que vive com a família no campo de Foulbé. “E aqui não podemos cultivar a terra, porque para onde quer que vamos, vem sempre alguém dizer-nos que estamos no terreno que lhe pertence e expulsa-nos. Nem sequer podemos recolher madeira ou folhas. O que vai ser de nós?”

Esta expressão de desespero é também partilhada por Jean-Claude e Olga. “O futuro? Como é que posso falar do futuro quando nem sei se vamos comer hoje?”, confessa Jean-Claude. “O nosso futuro é muito vago, mas esperamos regressar à aldeia um dia, para recomeçarmos a nossa vida novamente”. Olga mostra-se menos esperançosa sobre o regresso a casa. “Não sobrou nada lá, e vivemos com medo de sermos atacados ou de adoecermos. O centro de saúde mais próximo fica a mais de 25 quilómetros de distância da nossa aldeia. Os meus filhos nunca foram vacinados. Nem sei se alguma criança na aldeia já o foi. Não me consigo imaginar a voltar.”

A situação em Ippy espelha, infelizmente, a realidade de muitas outras regiões na República Centro-Africana, onde décadas de conflito intermitente fomentaram uma das mais graves crises no mundo, em termos de esperança de vida, mortalidade materna, desnutrição e falta de acesso a cuidados de saúde. De acordo com os dados mais recentes das Nações Unidas, quase 30 por cento da população é refugiada ou está deslocada internamente, e mais de 60 por cento necessita de assistência humanitária.

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