A violência continua e as comunidades deslocadas perdem a esperança em Kivu do Norte

Mais de 190 000 pessoas tiveram de fugir de casa nos territórios de Rutshuru e Nyiragongo, na província de Kivu do Norte, República Democrática do Congo, devido ao ressurgimento do grupo armado M23 e dos confrontos intermitentes com o Exército congolês

Deslocados, incluindo crianças, abrigados em sala de aula de escola primária em Kivu do Norte, RDC.
© Alexis Huguet

“A família estava toda a trabalhar nos campos quando o tiroteio começou. Fugimos e caminhámos durante três horas à chuva até Rumangabo”, conta Ponsie Benda, que tem 54 anos de idade. Ele e os 13 filhos encontraram abrigo na escola primária do Parque Nacional de Virunga, em Rumangabo, em junho, quando os confrontos entre o grupo armado M23 e o Exército congolês se aproximavam cada vez mais da aldeia onde vivia. “Não podíamos regressar a casa. Fugimos com o que tínhamos connosco.”

190 000 pessoas em necessidade

Tal como Ponsie, mais de 190 000 pessoas tiveram de fugir de casa nos territórios de Rutshuru e Nyiragongo, na província de Kivu do Norte, devido ao ressurgimento do grupo armado M23 e dos confrontos intermitentes com o Exército congolês desde o fim de março de 2022.

A maioria das pessoas estabeleceu-se ao longo da estrada nacional que liga Rutshuru a Goma, a capital provincial de Kivu do Norte, acabando muitas vezes em locais sobrepovoados. “Dormimos ao relento. Construí este abrigo com paus e vou recolher folhas de bananeiras e de eucaliptos para cobri-lo. Assim, pelo menos as crianças ficarão um pouco protegidas”, explica Ponsie. Quando chegou com a família a Rumangabo, as salas da escola estavam já totalmente ocupadas, e a sua única opção foi ficar no pátio.

No estádio de Rugabo, no centro de Rutshuru, juntaram-se mais de 1 400 famílias. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) construiu abrigos comunitários, mas mesmo assim as condições permanecem extremamente precárias: cerca de 35 famílias partilham uma tenda que mede 18 metros por cinco. “Quando chove, a água inunda o chão dos abrigos e passamos a noite encharcados”, relata Agrippine N’Maganya, de 53 anos, que chegou a Rutshuru com seis dos dez filhos há mais de quatro meses. “Os outros devem estar no Uganda agora… Não tenho notícias deles desde que fugimos”, afirma preocupada.

“A proximidade nos campos para pessoas deslocadas internamente, combinada com a falta de chuveiros e de latrinas, é um grande fator de risco para a propagação de doenças infecciosas como o sarampo ou a cólera”, sublinha a coordenadora de emergências da Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Rutshuru, Bénédicte Lecoq.

Os estômagos estão vazios

À falta de abrigo soma-se a falta de comida. “Não temos nada para comer. Às vezes, pessoas que conheço da minha aldeia dão-me alguma comida que recolheram nos bairros”, explica Obed Mashabi, com 20 anos, e que encontrou refúgio no estádio de Rugabo no fim de março. “Comemos folhas cozidas de segunda a domingo”, acrescenta Ponsie. “A minha mulher apanha-as dos campos de outras pessoas, mas pergunta aos proprietários primeiro. Há entre-ajuda, porque a comunidade sabe bem o quanto estamos a sofrer. Partilham o pouco que têm.”

“As pessoas que tratamos têm os estomagos vazios”, frisa Bénédicte Lecoq. “É crucial aumentar as distribuições de comida, ou a situação pode piorar ainda mais”, insta ainda a coordenadora de emergências da MSF em Rutshuru.

No hospital geral de referência em Rutshuru, a unidade para crianças gravemente desnutridas, onde a MSF presta apoio, está sobrecarregada há semanas a fio, com uma taxa de ocupação de 140%. Nas instalações de saúde em Rutshuru e Nyiragongo onde as equipas da MSF providenciam assistência, o número médio de consultas ultrapassa as 100 por dia. As três principais doenças observadas são a malária, infecções respiratórias e diarreias.

“As nossas equipas não podem estar em todo o lado, dada a escala das necessidades. As unidades de saúde estão sobrecarregadas e enfrentam escassez de medicamentos. Face a esta emergência, é necessário que mais entidades se mobilizem para garantir que todas as pessoas têm acesso a cuidados médicos sem custos”, sublinha Bénédicte Lecoq.

Para além das necessidades imediatas, as consequências a longo prazo para as comunidades afetadas são também uma fonte de preocupações. A maioria das pessoas depende da agricultura e não acederem aos campos de cultivo durante semanas ou meses seguidos pode exacerbar a insegurança alimentar para milhares de pessoas na região. “Temos comida na aldeia, nos campos, mas não podemos regressar. A guerra continua lá. Deve estar tudo a apodrecer”, prevê Obed Mashabi.

Assistência humanitária limitada

A crise prolonga-se há meses, e Agrippine, Ponsei e Obed lamentam a falta de assistência humanitária que receberam até agora. “Nunca recebi comida distribuída, nenhumas bacias, nenhum tacho; nada”, garante Agrippine. “Ninguém veio até aqui. Se recebêssemos ajuda, não estaríamos aqui assim ao relento”, acrescenta Ponsie.

À medida que as semanas passam, Agrippine perde cada vez mais a esperança de regressar a casa. “Não tenho esperanças de voltar para casa em breve. Não houve melhorias”, insiste. Ponsie partilha esta desesperança: “Porque é que ainda há guerra em Kivu do Norte? Esta não é a primeira vez que temos de fugir. Não sei como é que os meus filhos vão crescer numa guerra.”

O recente escalar da violência nos territórios de Rutshuru e de Nyirangongo está a acentuar uma grave situação humanitária. É estimado que em junho de 2022 havia cerca de 1,6 milhão de pessoas deslocadas e mais de 2,5 milhões em necessidade na província de Kivu do Norte.

 

As equipas da MSF continuam a adaptar a resposta de acordo com a evolução da situação e das necessidades. Estão a prestar apoio nos centros de saúde em Rubare, Kalengera, Munigi e Kanyaruchinya, e estabeleceram duas clínicas temporárias: uma no estádio de Rugabo, no centro de Rutshuru, e outra ao lado do posto de saúde de Rumangabo, onde muitas pessoas deslocadas se reuniram. A MSF também construiu latrinas e chuveiros em vários locais e está a ajudar a melhorar o abastecimento de água. Em Munigi, por exemplo, as equipas da organização médico-humanitária estão a fornecer água potável diariamente em quatro locais, além do centro de saúde, e distribuíram kits de higiene, incluindo sabão, vasilhames e pensos higiénicos a mais de mil famílias.

A MSF também está a trabalhar no território de Kisoro, no Uganda, para prestar assistência a pessoas que fugiram e atravessaram a fronteira. As equipas estão a providenciar apoio no centro de saúde de Bunagana e no Hospital Distrital de Kisoro. No campo de trânsito de Nyakabande, a MSF disponibiliza cuidados de saúde primários e construiu 20 abrigos semi-temporários, além de 50 chuveiros e latrinas.

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