A violência sexual no estreito de Darién é cada vez mais cruel e desumana

“Uma cobra não te mata. O que te mata são os homens dentro da selva, que te violam e tiram a vida”, conta uma mulher às equipas da Médicos Sem Fronteiras (MSF)

Estreito de Darién - Migrações
© Natalia Romero Peñuela/MSF

Os migrantes que atravessam o estreito de Darién –  a fronteira de selva com 100 quilómetros que separa a Colômbia do Panáma – descrevem ser frequentemente sujeitos a raptos e violações em grupo dentro de tendas montadas na floresta especificamente para esse fim. Este ano, as equipas da Médicos Sem Fronteiras (MSF) providenciaram tratamento a 397 sobreviventes de violência sexual após chegarem ao Panamá – muitos deles crianças.

“Como é que é possível sobreviver a cinco violações?”, pergunta uma migrante venezuelana – que pediu para não ser identificada por razões de segurança – sem conseguir conter as lágrimas do rosto. A crise económica na Venezuela não lhe deu outra opção senão partir de casa em busca de segurança e estabilidade, o que significa atravessar o Darién, uma rota descrita como uma das mais perigosas do mundo.

Esta mulher enfrentou vários episódios de violência sexual durante a jornada: “estávamos a atravessar a selva em busca de um futuro melhor, não para as nossas vidas acabarem”, sublinha. “Uma cobra não te mata; o que te mata são os homens dentro da selva, que te violam e tiram a vida.”

Cerca de 460 000 migrantes atravessaram o estreito de Darién este ano em direção a Norte, para os Estados Unidos: uma jornada onde as pessoas estão expostas a todo o tipo de riscos, de quedas de penhascos a roubos, raptos e violações.

 

Uma cobra não te mata; o que te mata são os homens dentro da selva, que te violam e tiram a vida.”

– Migrante venezuelana, que pediu para não ser identificada

 

Darién - migrações
A MSF tem centros de receção de migrantes em Lajas Blancas e San Vicente. © Natalia Romero Peñuela/MSF

A mulher conta como todo o grupo com quem viajava foi sequestrado por homens armados e submetido a violência. “Bateram-me nas pernas com um bastão. Os que tinham dinheiro foram simplesmente espancados”, lembra. “Foi ainda pior para os que disseram que não tinham nada, depois foram revistados e foram ainda mais espancados. Exclamaram: ‘esta aqui tem dinheiro’, e violaram-na. Vi muitas pessoas a serem violadas. Vi-as nuas e espancadas. Independentemente se fossem um, dois ou três, eles agarravam em nós e violavam-nos. Depois vinha o próximo e violava-nos novamente, se gritássemos, eles batiam-nos.”

 

Vi muitas pessoas a serem violadas. Vi-as nuas e espancadas. Independentemente se fossem um, dois ou três, eles agarravam em nós e violavam-nos.”

– Migrante venezuelana

 

A violência sexual está a aumentar no estreito de Darién: há cada vez mais sobreviventes que procuram a assistência da MSF no Panamá. Só no mês de outubro, as equipas da organização prestaram apoio a 107 pessoas; numa só semana, 59 pessoas procuraram o apoio da MSF, o que equivale a um episódio de violência sexual a cada três horas. Três dos sobreviventes de violações eram crianças de 11, 12 e 16 anos.

Por mais chocantes que sejam, é provável que estes números sejam muito superiores na realidade, pois o estigma e o medo levam muitas vezes os sobreviventes a não denunciar episódios de violência sexual.

“Nem todas as pessoas que sofrem violência sexual recebem apoio atempadamente, devido ao estigma contra os sobreviventes, às ameaças dos perpetradores, às formas de violência sexual não reconhecidas como tal, e ao facto de que as pessoas não se sentem seguras a pedir ajuda”, sublinha a coordenadora médica da MSF, Carmenza Gálvez. “Além disso, há o medo de que denunciar os crimes possa atrasar a jornada para Norte.”

Os pacientes da MSF relataram às nossas equipas que era comum homens armados raptarem grupos de migrantes e assaltá-los, sublinhando que esse era o custo de passar pelo estreito de Darién. Descreveram como a violência sexual – desde os toques indesejados à violação – ocorre à frente de outros migrantes, ou em tendas montadas para esse mesmo fim. 95 por cento das vítimas de violência sexual tratadas pela MSF eram mulheres. Aqueles que tentaram defender as vítimas foram submetidos a violência e, em alguns casos, mortos.

Darién - centros de de receção migrantes
Priscilla Acevedo, médica da MSF, atende uma mãe e o filho na tenda da MSF em Lajas Blancas. © Natalia Romero Peñuela/MSF

“Alguns jovens também foram espancados e atirados para o chão por tentarem defender as mulheres”, lembra a mulher venezuelana. “Mataram um rapaz à nossa frente com um tiro na testa.”

“Só pedimos que não haja mais mortes e violações”, apela a mulher. “Não é justo que façam isso connosco. Somos mulheres guerreiras para os nossos filhos. Sabemos que há rios, animais e cobras, mas o mais perigoso são os homens dentro da selva. Estão a violar-nos e a acabar com as nossas vidas.”

A equipa da MSF no Panamá que presta apoio a sobreviventes de violência sexual lembra as graves repercussões médicas e psicológicas.

“A violência sexual tem consequências para a saúde física e psicológica das pessoas, como as infecções sexualmente transmissíveis que podem afetar a fertilidade das mulheres se não forem tratadas a tempo”, explica Carmenza Gálvez. “Pode expô-las a infeções por VIH, com o consequente risco de desenvolverem SIDA e infetar outros. Pode causar trauma físico, gravidezes indesejadas, isolamento social, sentimentos de culpa, pensamentos recorrentes sobre o que enfrentaram, depressão, ansiedade, pensamentos suicidas, insónias e o risco de abuso de substâncias e de novos eventos de violência sexual.”

A MSF insta os governos a garantirem uma presença efetiva no estreito de Darién para eliminar os riscos aos quais os migrantes estão expostos, incluindo a violência sexual. “Ninguém deveria sofrer esse tipo de violência”, frisa Gálvez. A MSF apela também ao governo que garanta cuidados médicos atempados aos sobreviventes de violência sexual, para evitar gravidezes indesejadas, VIH e outras doenças sexualmente transmissíveis.

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