Aborto Inseguro: Cinco conclusões do estudo da MSF

Cerca de 70 por cento das mortes maternas ocorrem na região da África Subsariana. Entre as cinco principais causas estão as complicações relacionadas com o aborto inseguro.

Estudo Aborto - Ilustração 5
© Alice Wietzel

“Estava perturbada. Tinha tomado um medicamento tradicional. Antes disso, uma pessoa tinha-me mostrado como introduzir um pedaço de ferro na vagina. Disse-me que isso dilataria o colo do útero, mas não funcionou. Também me disse para ferver as raízes de uma planta chamada kava com natron [carbonato de sódio] e beber a mistura. Depois de a beber, senti-me mal do estômago e com tonturas. Não me conseguia levantar da cama. A dor era intensa.”

— Rasha*, 32 anos, internada no hospital de Bangui

Estudo Aborto - Ilustração
© Alice Wietzel

Mais de 20 000 pessoas morrem todos os anos devido a complicações relacionadas com abortos inseguros, sendo uma das principais causas de mortalidade materna no mundo. Em contextos de fragilidade ou em países afetados por conflitos, as complicações resultantes do aborto inseguro são até sete vezes mais graves.

Um aborto inseguro induzido é realizado por alguém que não tem as competências necessárias ou que não cumpre as normas médicas. Muitas vezes surgem complicações graves, que podem resultar na morte ou em potenciais ameaças à vida.

 

Uma mulher explicou que se esperasse mais tempo poderia morrer, porque estava a sangrar. O condutor da mota disse que tinha levado uma mulher no mesmo estado ao hospital e que isso lhe tinha salvado a vida. Disse para nos despacharmos e foi assim que me trouxeram para aqui.”

—Patricia*, 35 anos, internada no hospital de Bangui

Estudo Aborto - Ilustração 2
© Alice Wietzel

A Médicos Sem Fronteiras (MSF) participou recentemente no primeiro estudo sobre aborto inseguro, centrado em dois hospitais de referência em África: o hospital de Bangui, na República Centro-Africana (RCA), e um hospital no estado de Jigawa, no norte da Nigéria.

Conduzido em parceria com a Épicentre, o Guttmacher Institute, o Ipas e os Ministérios da Saúde da Nigéria e da RCA, eis as conclusões do estudo Abortion-related Morbidity and Mortality in Fragile and Conflict-affected Settings (AMoCo):

 

1 – O aborto inseguro é uma das principais causas de mortalidade materna na República Centro-Africana

Com 829 mortes em cada 100 000 nados vivos, a República Centro-Africana tem uma das taxas de mortalidade materna mais altas do mundo. Um estudo conduzido pelo Ministério da Saúde da República Centro-Africana e o Fundo das Nações Unidas para a População estimou que as complicações relacionadas com o aborto provocaram cerca de uma em quatro mortes maternas.

No hospital de Bangui, as complicações relacionadas com o aborto representaram 20 por cento de todos os internamentos de mulheres grávidas durante o período estudado. Mais de dois terços ocorreram durante o primeiro trimestre de gravidez e mais de um quarto das pacientes eram adolescentes com idade igual ou inferior a 18 anos.

 

“Ele está a preparar a candidatura ao treino militar. É melhor abortar esta gravidez se ele não vai estar aqui. Ele não estará confortável até acabarmos com ela. Neste momento, não tem dinheiro para me ajudar com o meu pequeno negócio, para que eu possa cuidar desta gravidez. Como é que vamos gerir isto? Ele foi falar com um profissional de saúde no hospital. Disse que queria um aborto porque não está pronto, então queria que fizéssemos uma curetagem. O profissional de saúde concordou.”

– Tracy*, 19 anos, admitida no hospital de Bangui

 

2 – O acesso à informação é crucial para cuidados de aborto seguros

Cerca de um quarto das mulheres inquiridas em Jigawa e 45 por cento em Bangui referiram ter induzido os próprios abortos. Mais de dois terços das que sobreviveram em Bangui e quase todas – 95 por cento – das que sobreviveram em Jigawa recorreram a métodos perigosos, incluindo a utilização de objetos metálicos ou varas de mandioca em condições sépticas, bem como injeções, ervas, remédios tradicionais e medicamentos não prescritos.

No hospital de Bangui, as mulheres que reportaram ter induzido um aborto inseguro tinham três vezes mais probabilidade de sofrer complicações muito graves, incluindo a morte.

 

“Era só um namorado, mas engravidei… Tentei abortar por mim, mas não funcionou, então tive de procurar uma mãe num dos bairros. Ela pediu-me 15 000 francos CFA, [cerca de 23 euros] pelo aborto, mas eu tinha apenas 13 000 francos CFA [cerca de 20 euros], então dei-lhos. Ela injetou-me um medicamento e dilatou-me o colo do útero com um caule de mandioca, e o feto saiu. Depois disso, comecei a ter dores abdominais.”

— Céline*, 27 anos, admitida no hospital de Bangui com complicações relacionadas com o aborto

 

Estudo Aborto - Ilustração 3
© Alice Wietzel

Para a maioria das mulheres, as únicas fontes de informação antes do aborto inseguro são pessoas amigas, familiares e colegas. Os métodos escolhidos parecem basear-se mais na perceção de eficácia e na facilidade de acesso do que na segurança das mulheres. Os parceiros estão também muitas vezes envolvidos na decisão de fazer um aborto e no método usado. Algumas pacientes, abandonadas pelos parceiros, podem sentir que não têm escolha para além de um aborto inseguro.

 

“Quando falei com ele acerca da gravidez, ele não respondeu. Um dia, disse-lhe que não me estava a sentir bem e ele começou a gritar comigo, dizendo que não era responsável pela gravidez. Quando o meu parceiro me disse isto, fiquei confusa e perguntava-me o que fazer se tivesse de levar até ao fim a gravidez. Seria capaz de tomar conta do bebé? Não conseguia fazê-lo sozinha, então comprei medicação. Desde aí, ele fugiu.”

– Magda*, 15 anos, admitida no hospital de Bangui

 

3 – A contraceção é muitas vezes inacessível

Uma das causas de raiz das gravidezes não desejadas é a dificuldade de acesso a métodos contracetivos. Apenas três por cento das mulheres inquiridas em Jigawa e 37 por cento das mulheres inquiridas em Bangui afirmaram estar a utilizar alguma forma de contraceção no início da gravidez. Na Nigéria, os principais obstáculos à utilização de contracetivos modernos são as recusas dos maridos ou da família, a falta de conhecimentos sobre a gravidez e as crenças religiosas.

 

“Não tinha ninguém para ir comigo, saio para o trabalho às sete da manhã e volto a casa às 11 da noite. Não tenho tempo para tomar a pílula. Simplesmente não tenho tempo.”

– Joana*, 32 anos, admitida no hospital de Bangui

 

Em Bangui, as mulheres referiram que não usavam contracetivos por terem medo dos efeitos secundários. Também explicaram que era difícil assegurar continuidade, com a escassa disponibilidade de métodos alternativos, altos custos de transporte e os horários de funcionamento limitados que tornam impossível a compra dos medicamentos.

 

4 – Grandes atrasos no acesso aos cuidados

As dificuldades de acesso aos cuidados de aborto também desempenham um papel na gravidade das complicações. Para metade das mulheres inquiridas, foram necessários dois ou mais dias  para chegar a uma unidade de saúde adequada após o aparecimento dos primeiros sintomas; para 27 por cento na Nigéria e para 16 por cento na República Centro-Africana foram necessários seis dias ou mais.

 

“Tinha dores na parte inferior do abdómen […] A certo ponto, perguntei-me se não seria por causa da distância que tenho de andar todos os dias.”

– Martha*, 27 anos, admitida no hospital de Jigawa

 

Inicialmente os sintomas não são entendidos como graves ou uma prioridade. Algumas mulheres não chegam a perceber que estão grávidas. Noutros casos, as mulheres simplesmente querem manter o aborto em segredo.

Estudo Aborto - Ilustração 4
© Alice Wietzel

Quando os sintomas pioram, muitas mulheres decidem voltar à pessoa que lhes fez o aborto ou a pessoas não qualificadas que prestam cuidados, o que causa maiores atrasos no acesso ao tratamento adequado. Algumas inicialmente tentam gerir os sintomas em casa por si próprias com medicamentos ou tratamentos tradicionais.

 

“Com a insegurança nesta zona, tive de esperar pela luz do dia para sair de casa. A pior parte foi que era fim de semana, domingo, e nesse dia é difícil arranjar transporte; não há táxis ao domingo. Perdi imenso sangue nesse dia, quase morri.”

– Julia*, 35 anos, admitida no hospital de Bangui

 

A falta de informação acerca das instalações de saúde adequadas também constitui um grande obstáculo no acesso a cuidados de aborto seguro. Quando encontram um local, devem também conseguir dinheiro para pagar o transporte e cobrir os custos do tratamento, e encontrar alguém que as acompanhe. No hospital de Bangui, onde se providenciam cuidados gratuitos, a maioria das pessoas que participaram no estudo desconhecia que não teria de pagar por um aborto seguro.

 

5 – A anemia crónica é um fator agravante na Nigéria

Embora as admissões por complicações relacionadas com o aborto fossem menos comuns no hospital nigeriano (quatro por cento das admissões em comparação com 20 por cento na República Centro-Africana), mais de dois terços das mulheres inquiridas apresentavam uma complicação grave.

Na região rural de Jigawa a anemia crónica é comum em mulheres, o que provavelmente agrava a taxa de complicações. Das pacientes com sangramento significativo, 67 por cento tinha anemiaem comparação com os 38 por cento na República Centro-Africana – o que sugere que provavelmente tinham anemia crónica subjacente. Os inquéritos a nível nacional confirmaram estes dados, mostrando que a proporção de mulheres em idade fértil com anemia no estado de Jigawa é uma das mais elevadas do país.

Para além disso, 61 por cento das complicações relacionadas com o aborto ocorreram durante o segundo trimestre – mais tarde do que as do hospital de Bangui – que podem também explicar a razão pela qual foram mais graves.

 

Como salvar vidas: Expandir o acesso a cuidados seguros de aborto e contraceção

A maioria das mortes relacionadas com o aborto resultam de abortos inseguros induzidos, que podem ser evitados através de cuidados abrangentes de aborto, incluindo cuidados pós-aborto, contraceção e serviços de aborto seguro, para que ninguém sinta que tem de recorrer a procedimentos perigosos ou adiar os cuidados até ser demasiado tarde.

“Em contextos frágeis ou afetados pelo conflito, assim como noutros locais, para salvar a vida de muitas mulheres e reduzir o sofrimento delas, precisamos de proporcionar o acesso a serviços de contraceção gratuitos numa vasta gama de opções, tanto nos centros de saúde como nos hospitais”, explica Estelle Pasquier, médica investigadora do Epicentre e co-autora do estudo AMoCo.

 Temos de investir na melhoria do conhecimento das comunidades acerca de métodos contracetivos e de aborto”, sublinha, “e realizar cuidados após o aborto e facilitar o acesso a cuidados após o aborto e de aborto seguro, incluindo ao nível da saúde primária”.

 

*Nomes alterados para proteção de identidade.

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