Afeganistão: “Tratar pacientes é nossa responsabilidade. Há muito trabalho em nossos ombros”

Médico de MSF em Herat, no Afeganistão, descreve a realidade de seu trabalho na cidade desde que o Talibã assumiu o controle e quase todas as outras organizações suspenderam suas operações.

Afeganistão: “Tratar pacientes é nossa responsabilidade. Há muito trabalho em nossos ombros"

Após meses de conflitos nos arredores de Herat, no Afeganistão, o Emirado Islâmico do Afeganistão, também conhecido como Talibã, assumiu o controle da cidade no dia 12 de agosto. MSF administra um centro de alimentação terapêutica para pacientes internados (IFTC), uma clínica para pessoas deslocadas e um centro de tratamento de COVID-19 em Herat. Um médico afegão de MSF que trabalha na cidade descreve como mantivemos os serviços funcionando após o fim do conflito e os novos desafios que eles e outros serviços de saúde enfrentam atualmente.

“Quando os conflitos se aproximaram de Herat, houve muito medo, as pessoas ficaram preocupadas. Eu também fiquei, sem saber o que aconteceria no futuro. Quando o conflito realmente começou dentro da cidade, muitas pessoas ficaram com medo e permaneceram em casa, mas a situação mudou drasticamente em cerca de três horas, e o Emirado Islâmico do Afeganistão assumiu o controle total da cidade.

Durante o conflito, muitos feridos foram levados ao Hospital Regional de Herat. Quando as pessoas ouviam sobre vítimas ou bombas, pegavam suas bicicletas, iam ao hospital e se ofereciam para doar sangue. Foram tantos doadores, que o hospital anunciou que tinha suprimentos suficientes e que ligaria para as pessoas se precisassem de mais. Acho inspirador que, durante os conflitos, haviam pessoas correndo em direção ao hospital para ajudar. Esse é um espírito muito bom.

Na manhã seguinte ao controle do Talibã, fui ao nosso ITFC para apoiar a equipe. Quando cheguei ao hospital, ainda não havia muitos pacientes; as pessoas não sabiam qual era a situação na cidade ou se ainda estávamos abertos. Primeiro demos medicamentos a todos os nossos pacientes e depois entramos em contato com nossa equipe para avisá-los que a cidade estava aberta e que era seguro para eles trabalharem. Depois de algumas horas, reunimos toda a nossa equipe e continuamos o tratamento dos pacientes.

Alguns dos meus colegas me disseram que quando saíram de casa para ir trabalhar de manhã, alguns dos seus vizinhos ficaram preocupados com eles e perguntaram: “O que estão fazendo? Vocês têm que ficar em casa”. Eles explicaram que o nosso trabalho é ajudar as pessoas e que agora elas precisam de ajuda porque as outras unidades de saúde estão fechadas. Muitos funcionários chegaram com essa atitude e foi legal de ver.

Antes do confronto, 95 crianças desnutridas foram admitidas em nosso centro. Temos apenas 42 leitos e, embora tenhamos acrescentado mais 18 ao montar tendas para funcionar como enfermarias temporárias, ainda estávamos bem acima da capacidade. Durante os combates, o número diminuiu para cerca de 60, mas os números estão aumentando novamente, temos cerca de 80 pacientes internados, e aumenta a cada dia.

Também administramos uma clínica perto de acampamentos onde muitos deslocados se estabeleceram, incluindo pessoas de outras províncias, como Badghis e Farah. No primeiro domingo após a tomada de poder, muitos pacientes vieram à nossa clínica enquanto várias outras organizações suspenderam suas operações, seja por razões de segurança ou porque não podiam pagar os salários. MSF encontrou uma maneira de pagar todos os seus funcionários, o que deixou as pessoas mais calmas e esperançosas.

Começamos a trabalhar com dois médicos, depois três e agora quatro. Executamos um sistema de triagem, para que pudéssemos ver as pessoas que precisavam de atenção médica com mais urgência. Havia muitas pessoas vindo à clínica, em um dia, um de nossos médicos examinou mais de 150 pacientes.

Este é um momento de incerteza, então as pessoas estão trabalhando muito e estão cansadas, mas esperamos que a situação se acalme. As pessoas têm esperança, mas ainda têm pouca ideia sobre o que o futuro trará.

Agora, a principal preocupação é que as outras unidades de saúde, por exemplo aquelas que recebem financiamento do Banco Mundial, não possam continuar seu trabalho em Herat, pois a instituição suspendeu o financiamento. Não há uma ideia clara sobre o que vai acontecer. Alguns funcionários que trabalham para outras organizações não recebem salários há meses, isso já aconteceu antes, mas as pessoas tinham esperança de que seriam pagas eventualmente. Agora, com tanta incerteza, as pessoas me dizem que não têm esperança e muitos estão procurando outro emprego.]

Havia uma criança desnutrida em nosso centro que era de uma família extremamente vulnerável. Nós tratamos a criança e fornecemos comida para a mãe enquanto o pai ficava do lado de fora. Perguntamos a eles como puderam chegar ao hospital, pois o pai nos disse que antes ele não tinha nem 10 afegãos (0,53 reais). Eles venderam suas ovelhas e vacas e usaram esse dinheiro para ir ao hospital. Outros precisam pedir dinheiro emprestado aos parentes.

As pessoas ficam muito felizes quando conseguimos curar seus filhos. Havia um paciente de dois anos e meio que veio até nós de Badghis, a cerca de 250 km de distância. Primeiro, a criança foi internada no departamento de dermatologia do Hospital Regional Herat (HRH) porque apresentava um problema de pele. Depois de seis dias, eles foram encaminhados para o ITFC de MSF porque o bebê estava desnutrido, mas a condição de sua pele ainda era muito ruim. Vimos que a criança precisaria de um enxerto de pele no departamento de cirurgia, mas primeiro tratamos a desnutrição.

O tempo todo o bebê estava conosco, seu pai batia na porta, perguntando como a criança estava e questionando como ela ainda poderia estar doente depois de um mês e meio. Falamos com ele e pedimos que nos deixasse tratar o paciente. Nós o convencemos a confiar em nosso tratamento, procedimentos, ambiente e acompanhamento próximo do paciente.

Por duas semanas, ele voltou a cuidar de seus filhos restantes em Badghis com sua esposa permanecendo no ITFC. Quando ele voltou, viu que uma grande melhora do seu filho, teve uma conversa com sua esposa e os dois ficaram muito felizes. Após mais de dez dias, poderíamos dar alta.

Pelo menos uma vez por mês o pai nos liga para dizer “oi”, cumprimentar a todos e que se inspirou no tratamento que fornecemos. Quando o confronto começou em Herat, foi ele quem nos ligou perguntando se estávamos bem e ele fez o mesmo depois que a cidade foi tomada.

Tratar os pacientes é nossa responsabilidade, é assim que penso. No momento, MSF é a única organização internacional que trabalha em Herat, enquanto as demais pararam suas atividades. Antes podíamos encaminhar as pessoas para outros provedores de saúde, mas agora parece que, quando as pessoas vêm até nós, somos a última opção.

Em comparação com o tempo anterior, há mais responsabilidade e mais desafios. Há muito trabalho em nossos ombros”.

 

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