Ciclone Idai, Moçambique: “Sob a água, você vai nos achar”

Enfermeira de MSF conta sobre a perda de seu marido e como ela encontra forças para seguir em frente

Ciclone Idai, Moçambique: “Sob a água, você vai nos achar”

A. é uma enfermeira de 26 anos que trabalha com Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Moçambique. Ela e seus filhos sobreviveram ao ciclone Idai, mas seu marido foi morto. Apesar da tragédia, ela cuida de pacientes nas áreas mais remotas de Moçambique, em comunidades devastadas pelos efeitos do ciclone. Esta é a sua história.

“Eu nasci em uma pequena cidade, mas me mudei para Nhamatanda para estudar porque queria ser enfermeira. Conheci meu marido em uma partida de futebol, aqui mesmo, neste campo onde pousamos o helicóptero para operar nossas clínicas móveis. Ele estava estudando para ser professor. Costumávamos organizar partidas entre estudantes de enfermagem e de pedagogia, e em um desses jogos nos conhecemos e nos apaixonamos.

Em 2015, nos formamos e nos casamos logo depois, e nos mudamos para a casa dele para criar nossa família perto dos pais dele. Nós tivemos nosso filho, que agora tem dois anos, e meu marido me ajudou a criar minhas duas filhas mais velhas do meu primeiro casamento.

Meu marido conseguiu um emprego como professor e se mudou para dar aulas no ensino fundamental. Ele costumava vir todos os meses para nos ver e tinha muito orgulhoso de seu trabalho, ensinando as crianças a se tornarem cidadãos melhores. Eu cuidei da casa e trabalhei aqui e ali para conseguir pagar as contas. Éramos felizes.

No dia 14 de março deste ano, tudo mudou.

Nós já sabíamos que o ciclone estava chegando quando ouvimos a notícia no rádio. Mas nada poderia nos preparar para o que aconteceu. Meu marido ligou para nós pouco antes do ciclone chegar para perguntar como estávamos e nos dizer para ficarmos seguros. Ele estava tão preocupado, mas dissemos a ele que tomaríamos cuidado. Ele disse que faria o mesmo e disse que nos amava. Essa foi a última vez que nos falamos.

Às 10h da noite começou a chover. Eu não posso explicar como foi, mas nunca na minha vida, nem na vida dos meus pais e avós, alguém viu uma chuva assim. A água começou a subir em nossa casa e os móveis estavam flutuando. Eu coloquei meus filhos na mesa da cozinha para não se molharem e rezei, porque estava com muito medo. Eu pensei no meu marido.

Tudo o que sei sobre o seu destino é contado por seus colegas e amigos, que estavam com ele naquela noite. Dizem que a água começou a subir na escola até chegar ao pescoço e tiveram que nadar até o teto. Mas logo o telhado também estava coberto de água e a correnteza era forte. As pessoas tiveram que nadar até as árvores mais próximas e rezar para que a árvore à qual conseguiram chegar resistisse aos ventos e à água. Meu marido e muitos outros escalaram a árvore errada. A árvore caiu na água e ele foi levado pela correnteza. Ele estava se segurando por muitas e muitas horas e não tinha mais forças para nadar. Muitas crianças da escola morreram assim, porque seus braços eram muito fracos.

No dia seguinte, muitos corpos foram arrastados para a costa de Beira. Depois de dois dias sem notícias dele, seus irmãos foram à praia para procurá-lo entre os corpos. Eles passaram um dia inteiro debaixo de sol, mas não o encontraram. Aqueles que foram encontrados foram os abençoados, pois suas famílias tiveram a chance de dizer adeus – eu nunca tive essa oportunidade.

Passei dois dias na cama depois do que aconteceu, incapaz de me mover ou fazer qualquer coisa. Minha casa foi destruída, meu marido se foi, minha vida mudou completamente em uma noite. Certa manhã, eu me dei conta de que estava desempregada, sozinha, com três filhos. Eu tinha que lutar.

Muito da minha força para seguir em frente vem de ser enfermeira. Uma enfermeira tem que ser forte. Nós vemos tristeza e dor todos os dias, e é nosso papel no mundo apoiar e tratar. Como posso chorar quando é meu trabalho consolar aqueles que sofrem? Essa tragédia não atingiu só a mim ou à minha casa; tantos ao nosso redor sofreram e perderam tanto. Eu nunca vou esquecer, mas vou seguir em frente, não só por mim, mas pelos outros.

Meu trabalho em MSF me leva a lugares onde as pessoas perderam muito mais do que eu e me faz perceber como isso afetou meu povo. Quando as pessoas veem as fotos tiradas dos helicópteros, enxergam as áreas inundadas e as árvores arrancadas, mas há outras coisas que os olhos não veem. Sob a água, os galhos quebrados, você vai nos achar – nossas histórias, nossa tristeza e nossa determinação de viver.

Eu ainda não contei para o meu filho que o seu pai morreu. Eu não consigo encontrar forças para fazer isso, mesmo que eu tente. Ele é tão pequeno… Quando ele me pede para ligar para o pai, eu chamo um de seus tios e os faço fingir ser o pai. Meu sonho é que meus filhos estudem e terminem a escola. Às vezes, me permito sonhar em reconstruir nossa casa e até mesmo acrescentar uma pequena loja para vender comida para os meus vizinhos. Espero que meu marido fique orgulhoso do que nos tornamos depois que ele se foi.”

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