Cólera no Iêmen: “Ali está lutando pela sua vida”

Antonia Zemp é enfermeira da equipe de emergências de Médicos Sem Fronteiras (MSF) desde 2015. Ela acaba de voltar do Iêmen, onde trabalhou na resposta a um forte surto de cólera que já tirou cerca de 2 mil vidas e afeta hoje meio milhão de pessoas

Cólera no Iêmen: “Ali está lutando pela sua vida”

Tento inserir a agulha no braço de Ali Aahme, um menino de 10 anos. Desde ontem, ele sofre de diarreia e vômitos e está extremamente desidratado. Seus olhos são pretos e afundados, meio abertos e torcidos, sem conseguir responder ao estímulo. Ele tem as mãos e os pés frios, apesar da temperatura de 42 graus na sombra. Seu pulso está acelerado e é difícil medi-lo. Ele respira muito rapidamente. Suas veias estão colapsadas, não é um trabalho fácil. Peço ajuda aos meus colegas iemenitas, que já têm mais experiência nesse tipo de situação; peço que me ajudem a encontrar uma veia adequada para administrar fluidos intravenosos.

Todos estamos cientes de que Ali está lutando pela sua vida e que sua sobrevivência depende de encontrarmos ou não uma veia para aplicar nele hidratação intravenosa.

Juntos conseguimos inserir duas agulhas e as pressionamos para que os fluidos entrem no corpo exausto de Ali. Sua circulação suga o líquido como uma esponja, de tão necessário que ele é. Felizmente, observamos uma melhora em apenas 20 minutos. Ali começa a se mexer e a gemer. Sua mãe chora de esgotamento, medo e alívio. Ela nos agradece eufórica.

Preciso de um momento para respirar e processar as emoções enquanto meus colegas se ocupam do paciente seguinte, inserindo mais agulhas e ajudando outros pacientes a tomarem soluções de reidratação oral.

Mais rápidos que a cólera

Devemos ser mais rápidos na aplicação de reidratação em nossos pacientes do que a cólera o é em desidrata-los por meio de diarreias agudas e vômitos. Mais rápidos!

No início de maio, abrimos um centro de tratamento de cólera em frente ao hospital de MSF em Abs, oeste do Iêmen. O prédio é uma escola primária cujos alunos estão de férias atualmente. No início da epidemia, quando o número de pacientes era previsível, podíamos trata-los e isolá-los dentro do próprio hospital. Contudo, à medida em que o surto avançava, o número de afetados foi aumentando tanto que ficamos sem espaço no hospital.  

A epidemia se disseminou tão rápido que os 50 leitos do novo centro de tratamento já estavam ocupados na primeira semana. Durante alguns dias, sequer ficamos surpresos quando chegamos a registrar mais de 200 pacientes por jornada. Já no fim de minha missão, atendíamos mais de 400 pacientes por dia. Meus colegas de Abs contam que, felizmente, o ritmo das admissões diminuiu nas últimas semanas e que o número de admissões diárias se aproxima de 30. Desde o início da epidemia, tratamos quase 15 mil pacientes somente em Abs.

Mais ajuda é necessária para lutar contra a epidemia. Tentamos responder às necessidades e reorganizar mais e mais salas de aula para que possam ser usadas pelos pacientes. Porém, o espaço é provavelmente o problema mais fácil de resolver. Um número maior de pacientes também significa mais medicamentos, mais profissionais, mais água, mais leitos, mais banheiros. Tudo isso leva tempo, mesmo em meio a emergências. Na equipe de coordenação, planejamentos tudo com antecedência, mas o fato é que os números elevados nos deixam desnorteados.

Não é fácil trabalhar com a mente fria

Manter a cabeça fria não é uma tarefa fácil nestas condições, sem esquecer das altas temperaturas que superam constantemente os 42 graus ou da vestimenta obrigatória por razões culturais, um tecido longo e preto tradicional para as mulheres islâmicas.

Como líder de uma equipe médica, planejo os turnos, junto com o grupo, para os profissionais que ainda não foram recrutados. Também organizo as sessões de formação e faço pedidos de medicamentos para que não fiquemos sem estoque. Trabalhamos para garantir que cada paciente seja registrado corretamente de modo que os dados epidemiológicos possam ser recompilados e para ajudar outros centros de saúde a também identificarem os afetados.  

O debilitado sistema de saúde do Iêmen

Esse surto seria muito diferente em um país industrializado europeu, mas estamos falando do Iêmen. Um país em vias de desenvolvimento, onde uma guerra sangrenta já dura mais de dois anos. O sofrimento da população é indescritível. A cada dia, essas pessoas veem suas vidas dominadas pelo medo, pela fome, pela morte e por doenças. Ainda que você tentasse imaginar o que é viver no Iêmen, não conseguiria chegar perto.

O sistema de saúde foi muito prejudicado pela guerra, com menos de 50% das estruturas sanitárias em funcionamento atualmente. Os profissionais não são pagos há um ano e os medicamentos são escassos, devido aos bloqueios aéreos e navais.

Falta de acesso a cuidados médicos

Se um paciente chega ao nosso centro de tratamento em estado avançado de desidratação, a ponto de não podermos mais salvá-lo, e perguntamos à família por que não o trouxeram antes, uma das respostas mais comuns de ouvir é que eles não têm dinheiro para chegar ao hospital.

Devido à desidratação, muitas mulheres grávidas perdem os filhos antes de dar à luz. Os corpos dos falecidos devem receber um tratamento especial para que outras pessoas não sejam infectadas durante o enterro.

Em uma ocasião, tive que lavar um bebê que nasceu morto. Ele tinha sete ou nove meses de gestação. O pior de tudo não foi ver um corpo perfeito, pequeno, mas sem vida em minha frente. O pior é que pensei que a morte seria a melhor coisa que poderia acontecer com aquela pequena criatura, porque seu futuro teria sido um dos mais incertos e difíceis do mundo.

Envio meus maiores cumprimentos aos meus colegas iemenitas. Apesar de tudo, eles continuam motivados, dia após dia, para trabalhar e lutar contra o sofrimento ao qual eles mesmos também se expõem. Obrigada.

Desde março de 2017, o Iêmen está sofrendo uma das suas piores epidemias de cólera, que já infectou centenas de milhares de pessoas. O número total de casos suspeitos de cólera divulgado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e por autoridades de saúde do Iêmen no fim de agosto é de 575.249, com mais de 2 mil mortes. O número de casos é muito alto em comparação à primeira onda da epidemia (23.506 casos suspeitos entre outubro de 2016 e 21 de março de 2017, de acordo com a OMS). Os casos do atual surto foram comunicados em 21 das 22 províncias do país (o surto anterior tinha atingido no máximo 15 províncias).

MSF tratou mais de 91.645 pessoas desde o início do surto, cerca de 15% dos pacientes com cólera registrados no Iêmen. MSF instalou e apoiou 22 centros e unidades de tratamento de cólera em 9 províncias iemenitas. Houve uma redução no número de casos de cólera e de diarreia aguda aquosa registrados semanalmente no país desde meados de julho.
 

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