Como MSF cruzou duas vezes o caminho de uma enfermeira da Nicarágua

Conheça a história de Lucia, que fez parte da equipe de MSF contra a COVID-19 no México

Como MSF cruzou duas vezes o caminho de uma enfermeira da Nicarágua

MSF mantém um centro de atendimento de saúde mental na Cidade do México para pessoas que vivenciaram casos de violência em outros países da América Latina. Lucia, de 30 anos de idade, é da Nicarágua e trabalhava como enfermeira, mas precisou deixar o país, pois estava sendo perseguida. Ela viveu situações difíceis na rota de migração até chegar à capital mexicana.  Após encerrar seu tratamento, acabou se unindo às equipes de MSF no combate à COVID-19. Confira seu relato completo e saiba como isso aconteceu:

“Eu morava com minha mãe e minha irmã em Manágua e me considero uma pessoa disciplinada. Sempre estudei e trabalhei. Ainda jovem, decidi entrar para o exército, mesmo com a minha família sendo contra. No exército, um de meus superiores começou a me assediar, então eu decidi abandonar o serviço. Concentrei-me em estudar Enfermagem e consegui um emprego em um hospital.

Em 2018, eu estava no último ano da minha licenciatura quando começaram os protestos pedindo reformas sociais e do sistema de segurança. Muitos estudantes foram às ruas para protestar, foram reprimidos pelo governo e muitos morreram.

No meu caminho para a universidade ou ao trabalho no hospital, via a polícia atirando em civis no meio das ruas. Também havia atiradores nos telhados. Em 30 de maio, houve um tiroteio em Manágua e eu estava trabalhando no hospital quando os feridos começaram a chegar. Os pacientes que se recuperaram – homens e mulheres – foram enviados para a prisão, onde foram torturados, estuprados ou mortos.

Havia crianças feridas, pessoas mutiladas e outras morrendo nas ruas. Eu nunca havia visto nada parecido em minha vida, nem imaginava que poderia ver.

A situação durou meses. Um dia, quando cheguei em casa do trabalho, recebi um telefonema do exército. Ao entrar, você assina um contrato. Eu era muito jovem quando me alistei e não entendia todas as implicações que o documento teria. Torna obrigatório que você vá para a guerra. Você é obrigada a aceitar ou eles podem colocá-la na prisão por até 30 anos alegando traição.

Eles estavam me ligando constantemente. Tinham todos os meus dados, incluindo meu endereço residencial, mas evitei as chamadas. Não queria matar pessoas. Eles estavam colocando membros do exército na polícia e enviando-os para matar pessoas nas ruas.

Eles começaram a procurar por mim e vieram na universidade. Perguntaram aos meus colegas e tive que mudar de universidade. Parei meu trabalho porque eles estavam me procurando lá também. Ficaram me vigiando de uma van.

Então, decidi sair da Nicarágua, deixar meu trabalho, meus estudos e minha família, embora eu estivesse ganhando um bom dinheiro, estudando algo que gostava e era feliz morando com os meus familiares.

Mas eu sabia que se ficasse, eles me colocariam na prisão. Então, vim para o México. Na fronteira, eles verificam seus documentos, e se você é ou foi militar seu registro faz parte de um banco de dados. Se você tentar deixar o país sem a permissão deles, colocam você na prisão. Então, eu paguei para cruzar as fronteiras ilegalmente. Tive que cruzar três fronteiras. Eu me senti uma criminosa.

Há muito sofrimento na rota de migração e passei noites com muito medo. As pessoas tiram vantagem da sua vulnerabilidade. Foi horrível. Coisas terríveis aconteceram comigo que eu prefiro não contar ou lembrar. Como mulher sozinha, você sofre muito.

Entrei no México por Tapachula. Em um abrigo, me disseram que eu poderia pedir asilo. Foi quando a imigração me prendeu. Levaram meu passaporte e meu dinheiro. Me pegaram como se eu fosse uma criança. Eu não resisti e dei a eles tudo o que tinha, inclusive meus documentos. Eles me levaram para a imigração contra a minha vontade e queriam que eu assinasse um documento sem ler para que eles pudessem me deportar.

Eu queria pedir asilo e me recusei a assinar. Me mantiveram detida e acabei fazendo amizade com outra mulher que também estava presa. Ela teve a ideia de fugir do centro de detenção. Pedimos para ir ao banheiro e então escapamos pela porta quando os policiais estavam distraídos. Fiquei em vários abrigos ao longo da fronteira, em todos os tipos de lugares e em locais com condições muito difíceis.

Em um dos abrigos, nos aconselharam sobre o procedimento de asilo. Decidi alugar um quarto em Tapachula. Na casa, um homem me assediou e batia como um louco na minha porta. Ficava bêbado, drogado e muito agressivo. Um dia ele quase arrombou a porta.

Eu precisava encontrar outro lugar para ficar. Disseram-me para ir ao gabinete do procurador distrital de Imigração para registrar uma reclamação. Lá, fui atendida por uma suposta advogada, que se recusou a tomar minha declaração – o que acontecera comigo parecia pequeno e sem importância para ela.

Decidi ir para a Comissão de Direitos Humanos. O funcionário que me ajudou lá era bom. A partir daí, a advogada me assediou por telefone. Ela me ameaçou e me disse que se eles atirassem nela por minha causa, eu pagaria por isso.

Por causa das ameaças daquele homem e daquela mulher, a comissão solicitou que eu fosse transferida para Tlaxcala, onde tinha uma amiga. Poucos dias depois, descobri que o homem [que me assediou] fora preso sob a acusação de tráfico.

Foi difícil para mim em Tlaxcala também. O asilo foi negado, apesar de eu apresentar todas as provas. Eu deveria ir à Cidade do México para apresentar meu recurso. Houve momentos em que pensei em voltar para a Nicarágua. Estava cansada de sofrer tantas humilhações, de ser tratada como uma criminosa. Fico muito triste em dizer isso, não tenho boas lembranças. Houve tantos incidentes de abuso que eu prefiro não lembrar deles: agressões, roubos, assédio sexual, maus-tratos.

Comecei a ficar deprimida. Achei que minha vida era um desastre. Eu senti uma tristeza profunda e acabei vindo ao Centro de Atendimento Abrangente (CAI) de MSF, por intermédio das organizações que me ajudaram com minha documentação. Esse é o único lugar onde fui bem tratada. Comecei a ver o psicólogo, e, aos poucos, com o tratamento, comecei a me sentir melhor.

A coisa mais difícil para mim foi – e ainda é – sentir falta da minha família, já que não posso voltar e ficar com a minha mãe. Eu tive que mentir para ela, para que ela não se preocupasse. Ela não sabe o que aconteceu, pensa que eu vim ao México para trabalhar. Meu sobrinho morreu recentemente – ele era como um irmão para mim – e eu não pude estar lá com minha família.

Sempre fui autossuficiente – não gosto de depender da ajuda de outras pessoas – então, assim que terminei meu tratamento e peguei meus papéis de imigração, decidi arrumar um emprego. Falei com minha amiga de Tlaxcala e ela me conseguiu um emprego em um consultório médico. Depois de alguns meses, eu consegui outro emprego em uma casa de repouso, até que um dia vi uma vaga anunciada por Médicos sem Fronteiras.

A organização estava procurando pessoas para cuidar de pacientes com COVID-19 em Tijuana e eu decidi tentar. Fiquei surpresa quando me aceitaram. O trabalho é muito importante para mim – gosto muito da minha carreira. Felizmente, o projeto foi um sucesso e fomos capazes de ajudar na recuperação da maioria dos pacientes.

Com alguma experiência, pude me juntar a outra equipe de MSF em Reynosa, onde nós também tratamos pacientes com COVID-19.

Graças ao meu trabalho, consegui economizar algum dinheiro. Eu gostaria de me naturalizar e me estabelecer neste país e tenho esperanças de estar com minha mãe novamente.”

 

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