Cortes na ajuda humanitária ameaçam a vida de refugiados na Etiópia

Equipa médica da MSF a tratar uma criança com malária.
© Ehab Zawati/MSF

As condições de vida das pessoas refugiadas que vivem na região de Gambella, na Etiópia, estão a deteriorar-se rapidamente após cortes significativos na ajuda humanitária. O declínio acentuado resulta, em grande parte, das reduções globais no apoio por parte de doadores-chave, como a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês), o que afeta diretamente serviços essenciais como a distribuição de alimentos, os cuidados de saúde, o acesso a água potável e os serviços de saneamento.

Situada no Sudoeste da Etiópia, junto à fronteira com o Sudão do Sul, Gambella acolhe, desde 2014, um grande número de refugiados, maioritariamente sul-sudaneses. Atualmente, mais de 395 mil refugiados vivem em sete campos, incluindo o campo de refugiados do Kule, onde a Médicos Sem Fronteiras (MSF) presta serviços de cuidados de saúde há mais de uma década.

 

Um grupo de pessoas aguarda atendimento na unidade de cuidados ambulatórios da MSF no campo de Kule, na Etiópia.
Para muitas famílias no campo de refugiados de Kule, a MSF continua a ser uma das poucas fontes fiáveis de cuidados de saúde. © Ehab Zawati/MSF

 

Serviços essenciais à beira do colapso

A queda generalizada do financiamento humanitário na região levou à suspensão de serviços de nutrição em quatro dos sete campos de refugiados, o que deixou cerca de 80 mil crianças, com menos de cinco anos, em risco de vida por desnutrição.

“Recebemos comida uma vez por mês. Milho, trigo e sorgo. Mas nunca chega até ao fim do mês”, conta Nyauahial Pouch, uma mãe que percorreu cerca de oito quilómetros desde o campo de refugiados de Tierkidi para procurar um tratamento para a filha de 17 meses na clínica da MSF no campo de Kule. “Tem havido uma grande redução desde o ano passado. Alguns os produtos que costumávamos receber deixaram de ser distribuídos.” A filha de Pouch foi diagnosticada com desnutrição.

Desde outubro de 2024, os refugiados no campo de Kule têm acesso a apenas cerca de 600 calorias por dia, que representa menos de 30% do mínimo diário recomendado de 2100 calorias por pessoa. Outros campos de refugiados na região encontram-se numa situação semelhante. Por vezes, a distribuição de alimentos chegou mesmo a parar durante meses, devido a ruturas nas cadeias de abastecimento internacionais e à escassez de financiamento.

Em 2025, a MSF registou um aumento de 55 por cento nas admissões de crianças no centro de nutrição terapêutica de Kule, em comparação com o ano anterior. Metade destas crianças vieram de outros campos da região.

“Caminhámos três horas desde a nossa casa no campo de Akula até ao hospital da MSF”, relatou Kuoth, cuja filha de 1 ano foi tratada no hospital de Kule. “A nossa bebé tinha tosse, diarreia e desnutrição grave, e teve de ficar internada durante 15 dias até recuperar.”

 

Numa das salas do Centro de Alimentação Terapêutica da MSF em Kule, as crianças na fase dois de recuperação da desnutrição têm acesso a um ambiente mais seguro e estável enquanto se preparam para a alta.
Numa das salas do Centro de Alimentação Terapêutica da MSF em Kule, as crianças na fase dois de recuperação da desnutrição têm acesso a um ambiente mais seguro e estável enquanto se preparam para a alta. © Ehab Zawati/MSF

 

Acesso a cuidados de saúde limitado

O departamento de consultas externas da MSF registou um aumento de 58 por cento nas consultas em comparação com o mesmo período do ano passado, com muitos pacientes a chegarem de campos vizinhos. O número de mulheres a recorrer a consultas de vigilância pré-natal aumentou 72 por cento em comparação com 2024, o que demonstra uma procura crescente por cuidados de saúde materna.

“Estamos a receber cada vez mais pacientes de outros campos”, explica o coordenador de projeto da MSF em Gambella, Armand Dirks. “Em grande parte, porque esses serviços já não estão disponíveis localmente, devido à saída de muitas ONG da região por falta de financiamento. A MSF está sobrecarregada com o aumento da procura e tememos que este número continue a crescer nos próximos meses.”

 

Prevenção de doenças reduzida

Os cortes no financiamento levaram também à redução das atividades de prevenção de doenças, como os programas de prevenção da malária.

Como a malária é endémica na região, a equipa da MSF antecipa um aumento acentuado de pessoas com malária durante a atual estação das chuvas, que decorre de maio a outubro.

Em julho de 2025, o número de pacientes com malária nas instalações da MSF aumentou cerca de 125 por cento em comparação com junho deste ano. A organização já tratou, desde janeiro, mais de 23.800 pacientes – mais de metade vindos de campos de refugiados vizinhos.

Houve uma redução significativa de atividades-chave de prevenção da malária, tais como: a distribuição de mosquiteiros, pulverizações dentro e fora das habitações e o acesso atempado a cuidados de saúde. Por isso, a MSF teme que a região enfrente grandes dificuldades em controlar a propagação da doença, o que poderá aumentar ainda mais a pressão sobre um sistema de saúde já extremamente fragilizado.

Espera-se um aumento acentuado de ocorrências durante este período de pico de transmissão”, alerta o coordenador médico adjunto da MSF, Birhanu Sahile. “Trata-se de uma ameaça séria para refugiados já em situação de vulnerabilidade, que enfrentam uma exposição acrescida a mosquitos infetados com malária devido às condições de sobrelotação e à falta de saneamento.”

Para responder a esta situação, a MSF está a reforçar os serviços de tratamento da malária na região e está a planear criar um posto de saúde dedicado à malária no campo de refugiados de Tierkidi, que é um dos maiores campos de Gambella, com mais de 74 mil refugiados. As equipas da MSF estão também a distribuir mosquiteiros e a apoiar medidas de controlo de vetores e prevenção junto dos refugiados que vivem no campo de Kule.

 

Pacientes à espera de atendimento no Departamento de Consultas Externas da MSF no campo de refugiados de Kule, em Gambella, na Etiópia.
Pacientes à espera de atendimento no Departamento de Consultas Externas da MSF no campo de refugiados de Kule, em Gambella, na Etiópia. © Ehab Zawati/MSF

 

Exige-se uma resposta urgente

“Ao caminhar pelo campo, veem-se muitos edifícios vazios, espaços que antes eram utilizados por ONG que, entretanto, se retiraram”, contou Dirks. “A ausência delas sente-se profundamente. Serviços que antes apoiavam esta comunidade desapareceram.”

A MSF está a prestar uma vasta gama de serviços essenciais, incluindo cuidados de saúde primários e secundários, saúde materna e infantil, no campo de refugiados de Kule. As equipas da organização prestam apoio abrangente em casos de violência sexual e baseada no género, e também cuidados de saúde mental, acesso a água e saneamento, promoção da saúde e programas de nutrição.

“A MSF está a trabalhar no limite da capacidade, mas a escala das necessidades em Kule ultrapassa largamente aquilo a que conseguimos responder sozinhos”, avança o coordenador médico adjunto da MSF, Birhanu. “Sem apoio urgente e intervenções de outras organizações, esta crise vai continuar a agravar-se e colocar milhares de vidas já em situação de vulnerabilidade em risco ainda maior.”

À medida que várias organizações deixam de conseguir dar resposta às necessidades de saúde nos campos de refugiados, a MSF insta o Governo da Etiópia a tomar medidas claras e decisivas em Gambella para integrar a população refugiada nos serviços locais. Isso inclui reforçar o sistema de saúde existente, de modo a garantir acesso para todas as pessoas e resiliência face a cortes futuros.

 

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