COVID-19 na Venezuela: “Não é momento para fotos”

Yotibel Moreno, nossa especialista de comunicação na Venezuela, explica como nossas equipes estão acompanhando as famílias durante o difícil momento da perda de um ente querido

COVID-19 na Venezuela: “Não é momento para fotos”

A saúde mental dos pacientes, de suas famílias e dos profissionais de saúde da linha de frente tem sido uma parte fundamental dos projetos relacionados à COVID-19 administrados por Médicos Sem Fronteiras (MSF) em todo o mundo. Para Yotibel Moreno, especialista de comunicação de MSF na Venezuela, lidar com a dor provocada pelo vírus se tornou algo pessoal quando o próprio tio de Yotibel foi admitido na unidade de tratamento da COVID-19 de MSF em Caracas.

A COVID-19 causa ansiedade entre os profissionais de saúde, medo e ansiedade entre os parentes dos pacientes e medo, dor e às vezes morte entre os pacientes. Tenho atuado com MSF desde o início de 2019 e vi de perto o trabalho de médicos e enfermeiras, além de equipes de higiene, logística, serviço social e saúde mental, no cuidado de pacientes com COVID-19. Eu vi como cada elemento do sistema funciona, graças à dedicação de cada membro da equipe. Entrevistei pacientes que se recuperaram e sou grata às equipes pelos cuidados que receberam. Chorei de emoção ao vê-los colocar as impressões das mãos na parede do hospital como um símbolo de triunfo ao receberem alta.

Também soube de pacientes que morreram e vi como aspectos dessa pandemia complicam as reações das pessoas no luto – incluindo a impossibilidade de contato físico, a impossibilidade de acompanhar de perto o curso da doença, de acompanhar um paciente em momentos de desconforto, insônia, complicações ou medo, além da impossibilidade de realizar os rituais de luto e desapego.

Em MSF, encontramos maneiras de superar essas dificuldades. A equipe de MSF cuida de pacientes com COVID-19, por meio de visitas diárias de acompanhamento, chamadas telefônicas e mensagens de áudio e vídeo, informa aos familiares sobre o progresso do paciente ou a possibilidade de um resultado negativo. Essa prática mantém o vínculo,  os familiares e o paciente sentem que estão se comunicando e que podem lidar com a culpa que às vezes é sentida por ter deixado seus entes queridos hospitalizados em tão restrito isolamento.

Desta vez, tive que viver essa dor diretamente. Meu tio Miguel foi internado com sintomas graves na unidade de tratamento da COVID-19 de MSF. Desde o primeiro dia, a equipe ligou para relatar o seu progresso. Eles falaram com clareza, nos fornecendo todas as informações que precisávamos. O saber dá tranquilidade, acalma o medo e apazigua a incerteza da dor. Em várias ocasiões, enviamos mensagens de áudio com palavras de incentivo ao Miguel, o que manteve a família conectada a ele. A equipe de saúde mental nos contou quando estiveram com ele e nos incentivou a continuar enviando mensagens de áudio para lhe dar forças. Eles também monitoraram a saúde mental de nossa família, conferindo todos os que moravam com ele.

Os dias foram passando e o estado de Miguel piorou. Ele foi internado na UTI, e um dia nos deram a notícia que ninguém queria ouvir: Miguel havia morrido.

Após a notícia de sua morte, o tempo começou a passar em câmera lenta. O medo cobrou seu preço; a distância física que separava a família, a impossibilidade de se encontrar, abraçar e superar esse momento, tudo tornava mais difícil. No meio de uma pandemia, saber que um familiar morreu, não poder estar com ele, não ter a certeza dos passos a seguir, nos faz mergulhar num profundo estado de perplexidade. Como no início, as informações que recebemos continuaram a ser o melhor suporte.

A equipe de saúde mental de MSF apoia as famílias durante o processo de cuidar de pacientes com COVID-19 e os prepara para suas possíveis mortes. Quando um paciente morre, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda que os parentes tenham permissão para ver o corpo, sem tocá-lo, mantendo distância e tomando todas as precauções necessárias para prevenir a infecção. No Hospital Vargas de Caracas, a equipe de saúde mental de MSF criou um espaço para parentes se despedirem após a morte de um paciente, ao mesmo tempo em que mantêm medidas de biossegurança. Em uma área separada por uma parede de vidro e apoiada pela equipe de saúde mental de MSF, os parentes podem se despedir em um espaço íntimo e respeitoso.

Algumas semanas antes da morte do meu tio, eu e um fotógrafo tentamos documentar este espaço e os protocolos após a morte de um paciente da COVID-19. Eu estava ciente da delicadeza da situação e não tinha intenção de invadir a intimidade desse momento por uma foto ou história. Agradeci à equipe pelo trabalho realizado e por respeitar a decisão dos familiares de não serem fotografados. No final de nossa visita, o fotógrafo me pediu para ir atrás da tela de vidro onde os parentes se sentam e, em vez disso, tirou uma foto minha. No fundo, me senti grata por não ter alcançado nosso objetivo, sem sequer imaginar o que experimentaria dias depois.

Na manhã seguinte à morte de Miguel, eu estava com meu pai, meu primo Miguel Angel e sua namorada, sentados em frente à equipe de saúde mental de MSF. Com as mãos lavadas e as máscaras cheias de lágrimas, a equipe nos contou como foram seus momentos finais e o que a equipe médica e de enfermagem tinha feito para ajudar, nos encorajou e nos ouviu. Eles nos contaram os processos emocionais pelos quais a família passaria, o apoio psicológico disponível, os trâmites legais necessários e nos ofereceram a chance de nos despedirmos.

A negação é o primeiro estágio do luto; significa não acreditar quando você recebe a notícia de uma morte. O segundo estágio é raiva e frustração; você culpa o sistema de saúde, os médicos ou Deus. A negociação é o terceiro estágio. É neste momento que começa o processo de aceitação, embora persista a tentativa de não aceitá-lo; tende a ser expresso em um pedido de tempo extra, no desejo de uma oportunidade de fazer melhor, de corrigir as coisas. Nesse estágio, os rituais podem ajudá-lo a processar sua perda: espalhar as cinzas em um local significativo; preparar uma refeição de suas comidas favoritas como uma homenagem; assistir à missa ou qualquer prática religiosa; ou fazer qualquer outra atividade alinhada com os valores e crenças de alguém.

O quarto estágio do luto é a tristeza. A nostalgia surge; você sente que a vida não faz mais sentido e como será difícil viver sem essa pessoa. Você sente, vive e reconhece a perda. O quinto estágio é a aceitação, quando você reconhece a perda como uma realidade.

Voltei ao espaço para as despedidas finais de mãos dadas com meu pai, caminhando por onde vão os parentes, sem câmera, sem o objetivo de tirar uma boa foto ou conseguir uma boa história. Desta vez, fiz parte da história. Não conseguia parar de pensar naquele momento em que não atingi o meu objetivo e naquele em que entendi que não, este não é um momento para fotos. A dignidade daquele momento e a privacidade da dor merecem apenas palavras.

Entramos, nos despedimos. Com grande tristeza pela morte de Miguel, gostaria de agradecer a cada um dos meus colegas de MSF pelo tratamento respeitoso, humano e profissional que oferecem a cada paciente com COVID-19 e a cada membro da família em sofrimento. Gostaria de dizer ao resto da minha família que viemos, nos despedimos, não restaram pontas soltas e finalmente conseguimos fechar o ciclo de dor”.

Treinando profissionais de saúde para dar más notícias

Para ajudar parentes durante o processo de luto, equipes de MSF treinam profissionais de saúde em como comunicar más notícias e fornecer primeiros socorros psicológicos e autocuidado. O principal objetivo é ajudar os profissionais a enxergar o processo como natural e humano e evitar que se desliguem do sofrimento das pessoas, o que pode ser um mecanismo de defesa comum. Ao ver a morte como um processo natural, normal e esperado, pode-se ser mais solidário, empático e compassivo, o que ajuda os parentes que estão recebendo más notícias.

“Quando os parentes têm ferramentas emocionais e pessoais para receber a notícia, eles a aceitam e toleram”, diz Sandra Picón, psicóloga clínica do projeto de COVID-19 de MSF no Hospital Vargas de Caracas. “Mas quando não têm e a perda é relatada de forma inadequada, ela se torna chocante e é percebida como um desrespeito à condição humana”.

A dra. Militza Abzueta, médica da unidade de tratamento da COVID-19 de MSF no Hospital Vargas de Caracas, diz que o treinamento a ajudou muito a falar com os familiares dos pacientes, especialmente quando dava más notícias. “Os protocolos usados nos ajudam a dar a notícia”, diz ela. “Antes isso era feito de forma rápida, automática e eu não ficava para ouvir as respostas e reações das famílias. Após o treinamento, aprendemos a ouvir, acompanhar e respeitar os silêncios. Percebi que os familiares não queriam um médico, queriam companhia e empatia”.

 

Médicos Sem Fronteiras é uma organização médico-humanitária com projetos em 88 países. Suas equipes atuam na Venezuela desde 2015 e, atualmente, estão presentes na capital Caracas e nos estados de Anzoátegui, Amazonas, Bolívar, Sucre, Miranda, Táchira e Distrito Capital.

As equipes de MSF trabalham no Hospital Vargas de Caracas e no Hospital de Jesús Yerena em Lídice, ambos na capital venezuelana, projetando e preparando enfermarias para pacientes com sintomas leves a graves de COVID-19. Entre janeiro e junho de 2021, as equipes atenderam 8.300 pacientes nas áreas de triagem dos centros apoiados por MSF em Caracas.

Entre o início da pandemia e maio de 2021, equipes de MSF em Caracas forneceram apoio a familiares de 128 pessoas que morreram de COVID-19 e realizaram mais de 50 sessões de psicoeducação para equipes médicas e não médicas sobre luto e 120 sessões de treinamento sobre primeiros socorros psicológicos, autocuidado, gerenciamento de luto e relato de más notícias.

 

Partilhar