Dez anos desde o ataque ao Centro de Traumatologia da MSF em Kunduz

Centro de Traumatologia da MSF em Kunduz após o ataque que destruiu a unidade, em outubro de 2015.
© Andrew Quilty. Outubro de 2015

“O meu filho estava tão gravemente ferido que eu não tinha esperança de que ele pudesse recuperar, até o fígado tinha ficado em pedaços”, recorda Fátima, mãe de um paciente internado no Centro de Traumatologia da Médicos Sem Fronteiras (MSF), em Kunduz, no Afeganistão, em julho de 2025. “No hospital fizeram tudo o que podiam para o ajudar a recuperar, cuidaram dele dia e noite. Estou agradecida por termos este hospital.”

Quase dez anos antes, na noite de 3 de outubro de 2015, durante mais de uma hora, o Centro de Traumatologia de Kunduz esteve sob intensos e prolongados bombardeamentos aéreos dos Estados Unidos. O edifício principal do hospital, onde funcionavam a unidade de cuidados intensivos, as salas de urgência, o laboratório, a sala de raio X, o serviço de consultas externas, bem como as alas de saúde mental e de fisioterapia, foi atingido repetidamente, e com precisão.

Quando o fogo causado pelas bombas se apagou, o pó assentou e foi possível restabelecer contacto com os sobreviventes, apurou-se que 42 pessoas tinham sido mortas, entre elas 24 pacientes, 14 profissionais da MSF e quatro familiares que cuidavam de doentes. Alguns pacientes arderam nas camas, houve pessoas decapitadas ou que perderam membros, e outras foram atingidas do ar enquanto tentavam fugir do edifício em chamas. Até hoje, este continua a ser o ataque mais mortífero perpetrado contra uma das instalações da MSF.

 

Uma sala adjacente à entrada de emergência do departamento de consultas externas após o ataque ao Centro de Traumatologia da MSF em Kunduz, em 2015
Uma sala adjacente à entrada de emergência do departamento de consultas externas após o ataque. © Andrew Quilty, 2015

 

Sayed Hamed Hashemy, médico-cirurgião que estava a trabalhar numa das salas de cirurgia na noite do ataque, regressou ao hospital duas semanas depois do bombardeamento. Lembra o que encontrou: “Estava tudo queimado”, descreve. “A sala de operações onde eu tinha trabalhado na noite do ataque tinha buracos no teto e nas paredes. As botijas de oxigénio e a mesa de cirurgias estavam em pedaços. O tempo parecia ter parado: sentia-se o momento exato em que toda a gente tinha parado de trabalhar.”

A tinta das paredes tinha empolado e descascado com o calor das chamas, pedaços de metal grotescamente retorcidos misturavam-se com os escombros no chão e, em vários pontos, o telhado ficara aberto para o céu. As atividades médicas da MSF no Nordeste do Afeganistão tinham cessado.

 

O que foi destruído?

O projeto da MSF em Kunduz começou em agosto de 2011 como um hospital com 55 camas. A organização médica-humanitária prestava ali cuidados cirúrgicos de urgência e tratamentos de seguimento a pessoas com traumatismos provocados por explosões de bombas, estilhaços e ferimentos de bala resultantes do conflito em curso. Antes da abertura do hospital, quem, nesta região, sofria ferimentos graves, tinha de percorrer longas e perigosas distâncias até Cabul ou ao Paquistão, ou recorrer a clínicas privadas dispendiosas. Uma vez em funcionamento, a unidade cresceu rapidamente para 70 camas e, em 2015, já contava com 92. O hospital de Kunduz era o único centro especializado em traumatologia no Norte do Afeganistão.

Em setembro de 2015, os combates em Kunduz intensificaram-se quando as forças talibã entraram e chegaram a assumir o controlo da cidade, tendo-o perdido novamente algumas semanas depois. O hospital ficou na linha da frente e foi inundado de feridos; o número de camas aumentou para 110 e, mais tarde, para 150. No final daquele mês, havia tantos pacientes que estavam a ser tratados em gabinetes, em salas de exame e estabilizados em colchões no chão. Durante todo esse período, o Centro de Traumatologia manteve-se aberto e a funcionar, mesmo com a mudança constante no controlo da cidade.

“Tínhamos um enorme orgulho em tratar toda a gente – mulheres, homens, crianças – independentemente da etnia ou filiação política”, conta o médico Esmatullah Esmat, que sobreviveu ao ataque e trabalha atualmente como adjunto do responsável médico no projeto do Centro de Traumatologia de Kunduz.

 

Esta fotografia de dezembro de 2013 mostra uma das salas de cirurgia do Centro de Traumatologia da MSF em Kunduz, no Afeganistão.
Esta fotografia de dezembro de 2013 mostra uma das salas de cirurgia do Centro de Traumatologia da MSF em Kunduz, no Afeganistão. © MSF, 2013

 

Depois do ataque de 3 de outubro de 2015, com o hospital praticamente destruído e já sem condições para funcionar, o acesso a cuidados médicos de emergência ficou drasticamente reduzido para milhares de pessoas, precisamente no momento em que mais precisavam dele. Demorou mais de um ano até a MSF conseguir voltar a prestar cuidados de saúde na cidade de Kunduz, e ainda mais tempo para retomar as atividades de traumatologia. Nessa altura, o hospital regional de Kunduz esforçou-se para tentar colmatar a lacuna.

A MSF continuou a apoiar o Posto Avançado Distrital em Chahardara, outro distrito da província de Kunduz, localizado em território controlado pela oposição. As equipas de enfermagem prestavam cuidados imediatos a pacientes feridos, mas já não era possível encaminhá-los para o Centro de Traumatologia na cidade de Kunduz. Só estavam disponíveis cuidados básicos, e uma linha vital para salvar vidas tinha sido cortada.

 

O que aconteceu a seguir?

Enquanto organização, a MSF precisava de compreender o que se tinha passado e de lidar com a perda de pacientes, amigos e colegas. O ataque ocorreu apesar de a MSF ter partilhado as coordenadas GPS do hospital com o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, o Ministério do Interior e da Defesa do Afeganistão e o Exército dos Estados Unidos em Cabul. No rescaldo, apesar de conversações encetadas com as autoridades norte-americanas e afegãs a todos os níveis, a MSF não ficou convencida de que pudesse ser realizada uma investigação independente e imparcial pelas partes envolvidas. Perante isso, a organização médica-humanitária solicitou à Comissão Internacional Humanitária de Apuramento dos Factos que conduzisse uma investigação independente. Contudo, sem o acordo dos governos dos Estados Unidos e do Afeganistão, tal não pôde avançar e, em novembro de 2015, a MSF tornou pública a própria análise e averiguação internas.

Em janeiro de 2017, a MSF decidiu iniciar a construção de um novo hospital de traumatologia noutro local da cidade e, após a aquisição e desminagem do terreno, as obras começaram no final de 2018. Em paralelo, ainda em julho de 2017, a MSF abriu em Kunduz uma pequena clínica de consultas externas para pessoas com ferimentos e lesões ligeiras resultantes de traumatismos, mas que acabou por encerrar infelizmente em abril de 2020, durante a pandemia de COVID-19, e não voltou a reabrir.

Quando os combates em Kunduz se intensificaram em 2021, as equipas da MSF, ainda à espera da conclusão das obras do novo hospital, instalaram uma unidade temporária de traumatologia com 25 camas no edifício do escritório da organização na cidade para tratar feridos de guerra. Finalmente, a 16 de agosto de 2021, a MSF transferiu todos os pacientes dessa unidade improvisada para o novo Centro de Traumatologia de Kunduz. Nas palavras de um dos profissionais de saúde que ali trabalhava na altura: “Estamos a fazer o nosso trabalho médico enquanto a construção ainda está a decorrer, mas a rapidez com que toda a equipa de obras e os restantes estão a resolver as coisas é verdadeiramente impressionante.”

Com o regresso da calma à cidade após o fim dos combates, as necessidades de cuidados a prestar aos pacientes começaram a mudar. Em vez de ferimentos por tiros e explosões de bombas, a equipa da MSF passou a receber vítimas de acidentes de viação, à medida que as pessoas se sentiam mais seguras para circular. Essas mudanças mantiveram-se. Em 2023 foi iniciado um programa de gestão da resistência antimicrobiana e, em 2025, foram introduzidos cuidados especializados para queimados.

 

O Centro de Traumatologia de Kunduz hoje

O novo Centro de Traumatologia de Kunduz existe atualmente num país que já não está em guerra, mas que continua a enfrentar inúmeros outros desafios. O centro dispõe de um serviço de urgências, uma unidade de cuidados intensivos, serviços de internamento e em regime ambulatório, blocos operatórios e uma área dedicada à fisioterapia.

 

A equipa médica da MSF prepara uma paciente para uma cirurgia no Centro de Traumatologia de Kunduz.
A equipa médica da MSF prepara uma paciente para uma cirurgia no Centro de Traumatologia de Kunduz. © Noor Ahmad Saleem/MSF, 2022

 

O Centro de Traumatologia tem 79 camas e presta cuidados abrangentes a pacientes com traumatismos resultantes de quedas, acidentes de viação, engenhos explosivos não detonados, entre outros. Só entre janeiro e junho de 2025, foram atendidos 10.253 pacientes no serviço de urgências desta unidade hospitalar e foram realizadas 3197 intervenções cirúrgicas.

“A cidade de Kunduz hoje é diferente da cidade de Kunduz em 2015, tal como mudou a natureza dos traumatismos”, explica a coordenadora de projeto da MSF em Kunduz, Emilie Buyle. “Mas uma coisa que nunca vai mudar é que na MSF tratamos todas as pessoas de acordo com as necessidades médicas que têm. Não fazemos distinções com base na raça, género, etnia, crenças religiosas ou filiação política dos pacientes.”

 

 

Abdul Maqsood, Abdul Salam, Mohibullah, Naseer Ahmad, Mohammad Ehsan Osmani, Lal Mohammad, Najibullah, Shafiqullah, Aminullah Bajawri, Abdul Satar Zaheer, Ziaurahman, Abdul Nasir, Zabiullah, e Tahseel. Que eles, e todas as pessoas que morreram naquele dia, permaneçam vivos na nossa memória.

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