Dois anos de guerra no Sudão

Milhões de pessoas afundam-se ainda mais no desespero, na maior crise humanitária do mundo e sem fim à vista

Cólera no Sudão
© Mohammed Elhassan

A guerra no Sudão entre as Forças de Apoio Rápido e as Forças Armadas Sudanesas entra no terceiro ano, e a população continua ignorada, bombardeada, cercada, deslocada e privada de alimentos, cuidados médicos e serviços básicos essenciais que salvam vidas. Dados das Nações Unidas apontam que 60 por cento dos 50 milhões de habitantes do país necessitam de ajuda humanitária, e estão a enfrentar simultâneas crises de saúde e um acesso extremamente limitado a cuidados médicos públicos.

A Médicos Sem Fronteiras (MSF) insta uma vez mais as partes beligerantes e aliados a garantirem a proteção dos civis, do pessoal humanitário e das equipas médicas, e a levantarem todas as restrições à circulação de provisões e de equipas humanitárias – especialmente com a época das chuvas a aproximar-se rapidamente.

“As partes em conflito não estão apenas a falhar na proteção dos civis – estão ativamente a agravar o sofrimento deles”, frisa a coordenadora de emergências da MSF Claire San Filippo . “Para onde quer que se olhe no Sudão, há necessidades – são esmagadoras, urgentes e não estão a ser atendidas. Milhões de pessoas estão a receber pouca ou nenhuma assistência humanitária, as instalações e o pessoal médico continuam a ser alvo de ataques, e o sistema humanitário global não está a conseguir prestar nem sequer uma fração do que é necessário.”

 

As partes em conflito não estão apenas a falhar na proteção dos civis – estão ativamente a agravar o sofrimento deles.”

– Claire San Filippo, coordenadora de emergências da MSF

 

À medida que as linhas da frente dos combates mudaram ao longo da guerra, especialmente em Cartum e Darfur, os civis vivem com o medo constante de sofrer ataques retaliatórios de ambas as partes envolvidas no conflito. Nos últimos dois anos, tanto as Forças de Apoio Rápido (RSF, na sigla em inglês)  como as Forças Armadas Sudanesas (SAF) bombardearam repetidamente e de forma indiscriminada zonas densamente povoadas. As RSF e as milícias que lhe são aliadas lançaram uma campanha de brutalidade, incluindo violência sexual sistemática, raptos, assassinatos em larga escala, pilhagem de ajuda humanitária, destruição de bairros civis e ocupação de instalações médicas. Ambas as partes sitiaram vilas, destruíram infraestruturas vitais e bloquearam a ajuda humanitária.

 

Crises de saúde sobrepostas

Profissionais médicos acompanham paciente num centro de alimentação terapêutica em El Geneina. © Thibault Fendler/MSF, novembro 2024.

A fome generalizada está a instalar-se, segundo a ONU – o Sudão é atualmente o único lugar no mundo onde a fome foi oficialmente declarada em várias localidades. A primeira declaração da existência de fome foi feita no campo de pessoas deslocadas internamente em Zamzam, em agosto passado, e desde então alastrou a mais dez áreas. Outras 17 regiões encontram-se agora à beira de fome. Sem uma resposta imediata, centenas de milhares de vidas estão em risco.

Em março, a MSF apoiou campanhas de reforço da vacinação com multiantígenos (vacinas multivalentes) para crianças menores de 2 anos no Darfur Sul. Mais de 17.000 crianças, em 11 de 14 localidades, receberam vacinas e foram também rastreadas para desnutrição – concluiu-se que 7 por cento sofriam de desnutrição aguda grave e 30% apresentavam desnutrição aguda global. Em dezembro de 2024, durante uma distribuição de alimentos terapêuticos na localidade de Tawila, no Darfur Norte, as equipas da MSF rastrearam mais de 9.500 crianças com menos de 5 anos. Os resultados foram alarmantes: registou-se uma taxa de desnutrição aguda global de 35,5%, com 7% a sofrerem de desnutrição aguda grave.

 

Leia também: Crise de desnutrição no Sudão: MSF reforça a necessidade de ação imediata para evitar mortes e fome

 

Ao mesmo tempo, o Sudão enfrenta múltiplas emergências de saúde sobrepostas. Equipas da MSF trataram mais de 12.000 pacientes – incluindo mulheres e crianças – com traumatismos causados diretamente por ataques violentos. Na primeira semana de fevereiro de 2025, as equipas da MSF em três zonas do Sudão – Cartum, Darfur Norte e Darfur Sul – prestaram tratamento a pacientes feridos de guerra em afluxos maciços.

O Sudão vive também uma das piores crises de saúde materna e infantil que a MSF está a observar no mundo. Em outubro de 2024, em duas unidades de saúde apoiadas pela MSF em Nyala, capital do Darfur Sul, 26 por cento das grávidas e lactantes que ali procuraram cuidados médicos tinham desnutrição aguda.

“Surtos de sarampo, cólera e difteria estão a propagar-se, impulsionados pelas más condições de vida e pela interrupção das campanhas de vacinação. O apoio em saúde mental e nos cuidados para sobreviventes de violência sexual continuam dolorosamente escassos. Estas crises sobrepostas refletem não só a brutalidade do conflito, mas também as consequências devastadoras do colapso do sistema de saúde pública e de uma resposta humanitária que está a fracassar”, sustenta a coordenadora de emergências da MSF Marta Cazorla.

Desde abril de 2023, mais de 1,7 milhão de pessoas procuraram obter consultas médicas em hospitais, estruturas de saúde e clínicas móveis que a MSF apoia ou onde trabalha. Mais de 320.000 pessoas foram admitidas nas alas de urgências.

 

Estas crises sobrepostas refletem não só a brutalidade do conflito, mas também as consequências devastadoras do colapso do sistema de saúde pública e de uma resposta humanitária que está a fracassar.”

– Marta Cazorla, coordenadora de emergências da MSF

 

De acordo com a ONU, mais de 13 milhões de pessoas foram forçadas a deslocar-se pelo conflito – muitas delas mais do que uma vez. Destas, 8,9 milhões permanecem deslocadas dentro do Sudão, enquanto 3,9 milhões cruzaram as fronteiras para países vizinhos. Muitas vivem em campos sobrelotados ou em abrigos improvisados, sem acesso a alimentos, água, cuidados de saúde nem perspetivas de futuro. As pessoas dependem inteiramente das organizações humanitárias – mas apenas onde estas conseguem operar.

 

Instalações de saúde destruídas

Hospital destruído no Sudão
Hospital Universitário de Nyala. © Abdalla Berima/MSF, setembro 2024.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, mais de 70 por cento das instalações de saúde em zonas afetadas pelo conflito estão praticamente inoperacionais ou mesmo completamente encerradas, deixando milhões de pessoas sem acesso a cuidados vitais numa das piores crises humanitárias da história recente.

Desde o início da guerra, a MSF registou mais de 80 incidentes violentos contra trabalhadores, infraestruturas, veículos e provisões da organização médica-humanitária. Clínicas foram pilhadas e destruídas, medicamentos roubados e pessoal de saúde agredido, ameaçado ou morto.

Houve edifícios que foram destruídos, até camas foram pilhadas e medicamentos totalmente queimados. À distância parecia um hospital, mas ao entrar, constatava-se que só ali havia cobras e ervas daninhas”, descreve o responsável da MSF por promoção de saúde em Tawila, Muhammad Yusuf Ishaq Abdullah, sobre o estado em que ficou o hospital desta vila, no Darfur Norte, após ser atacado e saqueado em junho de 2023.

Estes ataques têm de parar – o pessoal médico e as instalações de saúde não são alvos.

 

Época das chuvas a chegar

A época das chuvas, que se aproxima rapidamente, ameaça agravar ainda mais uma situação já catastrófica – com o corte de rotas de abastecimento, a inundação de regiões inteiras e o isolamento de comunidades, justamente quando a escassez alimentar atinge o pico e aumentam os casos de desnutrição e malária.

A MSF urge que sejam acionadas imediatamente medidas de preparação antes do início da época das chuvas. É necessário abrir mais passagens fronteiriças e reparar e manter transitáveis as estradas e pontes principais, especialmente no Darfur, onde as cheias sazonais isolam comunidades ano após ano.

As restrições às atividades humanitárias têm de ser levantadas e o acesso livre e seguro tem de ser garantido. A MSF insta todas as entidades – incluindo doadores, governos e agências da ONU – a facilitar e dar prioridade à entrega de ajuda, de forma a garantir que esta não só chegue ao país, mas que seja transportada rapidamente e em segurança até às comunidades mais afetadas e remotas. Sem um compromisso sério para ultrapassar os obstáculos políticos, financeiros, logísticos e de segurança que impedem a entrega até ao destino final, inúmeras vidas continuarão para além do alcance da ajuda.

As pessoas no Sudão têm suportado este horror durante dois anos – dois anos de mais. Não podem, nem devem, ter de esperar ainda mais.

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