As enormes lacunas nos cuidados de saúde mental em todo o mundo

Na última década, MSF adaptou sua abordagem para os cuidados de saúde mental para integrá-los de forma mais deliberada em todas as suas atividades

Foto: Francesca Volpi

Hoje, os cuidados de saúde mental estão na linha de frente dos projetos de Médicos Sem Fronteiras (MSF) da América Latina à África, da Ásia à região do Mediterrâneo e em toda a Europa. Nos últimos 10 anos, as consultas de saúde mental em nossos projetos aumentaram 230% em todo o mundo.

Este enorme crescimento na prestação de cuidados de saúde mental ilustra a mudança em nossa abordagem, bem como as diversas e complexas necessidades psicológicas que as pessoas enfrentam em diversos contextos, desde crianças com traumas e feridas de guerra no Oriente Médio a famílias que fogem de conflitos e fazem jornadas perigosas em toda a África, América Central e no Mar Mediterrâneo.

Cuidados de saúde para refugiados, migrantes e solicitantes de asilo na Grécia

“Como quase não há provedores nos contextos em que trabalhamos, geralmente temos que criar nossos próprios programas de saúde mental”, diz Marcos Moyano, consultor de saúde mental de MSF.

“Visitei recentemente nossos projetos na Grécia, onde oferecemos apoio especializado em saúde mental para refugiados, migrantes e solicitantes de asilo. O sofrimento a que essas pessoas foram expostas e o nível de suas necessidades de saúde mental estão entre os mais altos que já vimos. Mas são poucas as organizações que prestam atendimento especializado a essas pessoas”, afirma Moyano.

Além da falta de serviços, surgem tabus, estigmas e desconfianças em torno da saúde mental em muitas partes do mundo. Nós temos que trabalhar com as comunidades para conscientizar e educar as pessoas sobre a importância da saúde mental. Apesar dos vários desafios, seja fornecendo suporte em emergências ou tratando pessoas afetadas por guerras e conflitos, o tratamento das necessidades de saúde mental em todo o mundo continua sendo uma prioridade para nossas equipes.

Vivendo sob ocupação na Palestina

Na Palestina, as pessoas vivem sob ocupação contínua e regularmente sofrem intensa violência. Como resultado, costumam apresentar problemas de saúde mental. As pessoas que chegam às nossas clínicas apresentam sintomas variados, incluindo tristeza, raiva, desesperança, pesadelos, problemas com urina na cama e pensamentos suicidas. Nos distritos de Hebron e Nablus, nossas equipes de psicólogos e conselheiros realizam atendimentos individuais e em grupo com adultos, adolescentes e crianças.

“Nossa vida é difícil. Todos os colonos ao redor estão armados”, diz Mariam Khdeirat, residente de Hebron. “Meus filhos caminhavam com as ovelhas e os soldados e colonos vieram atacá-los. Alguns dos colonos estavam armados e outros com cães. Dia e noite nos sentimos ameaçados e com medo. Mesmo quando nos sentamos para comer, estamos com medo deles”, diz ela.

“Estamos oferecendo apoio de saúde mental aos residentes de Hebron, mas não podemos resolver o problema da violência dos colonos contra o povo palestino”, disse Salah Daraghmeh, coordenador do projeto de MSF em Hebron. “Somente as autoridades israelenses podem fazer isso”.

Medo constante do conflito na Ucrânia

Após sete anos de conflito, as necessidades de saúde mental entre as pessoas em cidades e vilarejos próximos à linha de contato dos confrontos no leste da Ucrânia são preocupantemente altas. Muitas pessoas convivem com o risco constante da violência desde 2014.

O impacto psicológico já ocorre há muito tempo. Para as pessoas que ainda estão passando por isso, o trauma – tanto dos combates iniciais quanto da ameaça contínua de explosões, tiros, bombardeios e minas terrestres – faz parte do cotidiano.

“Minha filha estava bem na minha frente, a 10 metros de distância. Eu estava na porta”, disse Tetiana Karadzheli, que atua com MSF no vilarejo de Kamianka, região de Donetsk. “De repente, o tiroteio começou. Só me lembro de ser atingida na cabeça.

“Acordei [com] meu neto me abraçando: ‘Vovó, estamos vivos, estamos bem’. E foi isso – a última gota que faltava”, diz Tetiana. “Eu sou uma mulher forte, mas naquele momento, eu quebrei. Não há palavras para explicar isso, esse sentimento de medo. Não havia segurança alguma”.

Nossos psicólogos, médicos e enfermeiras com quem trabalhamos no leste da Ucrânia atendem muitos pacientes lutando contra a depressão, ansiedade e outros distúrbios comuns.

“Na maioria das vezes, é um estresse agudo e uma tristeza pela perda de seus entes queridos e de suas casas. Além disso, as condições relacionadas à ansiedade, como a insônia, são amplamente disseminadas”, diz Tetiana Azarova, psiquiatra de MSF.

As pessoas que vivem em pequenas cidades e vilarejos muitas vezes não têm dinheiro para viajar para as grandes cidades ou pagar por profissionais de saúde mental da rede privada, mesmo que possam superar o estigma associado aos transtornos mentais e procurar tratamento.

Treinar e apoiar médicos e enfermeiras da família é um exemplo das novas abordagens que nossas equipes estão implementando para disponibilizar serviços de saúde mental para comunidades afetadas por conflitos no leste da Ucrânia. No entanto, mais suporte e mais programas como este são necessários para garantir que os pacientes não sofram mais em silêncio.

A evolução dos cuidados de saúde mental

“Na última década, houve um avanço significativo em termos de conscientização sobre as necessidades de saúde mental e as lacunas existentes na qualidade do atendimento”, afirma Moyano. “Hoje, governos, doadores e a comunidade internacional são muito mais sensíveis a esses aspectos”, afirma. “Com a pandemia da COVID-19, observamos como a saúde mental passou a ser amplamente reconhecida como um aspecto fundamental do bem-estar das pessoas”.

No entanto, embora a conscientização sobre a saúde mental tenha aumentado e tratamentos eficazes para estes problemas estejam disponíveis, sabemos que, em países de baixa e média renda, menos de 10 por cento das pessoas necessitadas recebem tratamento adequado.

“Nos próximos anos, acho que continuaremos enfrentando níveis tremendos de sofrimento humano relacionados a desastres naturais e causados pelo homem que desafiarão a capacidade de governos e organizações de fornecer uma resposta eficaz”, disse Moyano. “Em contraste, a resiliência das comunidades e a força das organizações locais e voluntários terão um papel fundamental na proteção e apoio aos que necessitam de cuidados”.

 

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