Forças e colonos israelitas aumentam violência contra palestinianos na Cisjordânia

O terrível derramamento de sangue em Gaza está a espalhar-se para a Cisjordânia, desde 7 de outubro: pelo menos 165 palestinianos foram mortos e mais 2 400 feridos. As equipas da MSF no terreno constatam o aumento da violência e deslocações forçadas de palestinianos

Jenin, Cisjordânia
© MSF/Faris al-Jawad

São 2h30 da madrugada e um grupo de médicos junta-se do lado de fora da entrada do hospital de Jenin, na Cisjordânia, nos Territórios Palestinianos Ocupados. Uma breve pausa no ricochete dos tiros é seguida pelo som de homens a gritar e pelo guincho de pneus de um riquexó motorizado de três rodas, ou tuk-tuk, que chega aos portões do hospital. E logo se vê o amontoado de corpos ensanguentados transportados na parte de trás do veículo.

Homens jovens com buracos de balas nos abdómenes e na parte inferior das coxas são deitados em macas e levados rapidamente para a sala de urgências, onde são examinados, enfaixados e prontamente encaminhados para o bloco operatório.

“A maior parte dos pacientes que recebemos foram alvejados no abdómen e nas pernas”, descreve o médico da unidade de cuidados intensivos Pedro Serrano, que integra a equipa da Médicos Sem Fronteiras (MSF) no hospital de Jenin. “Alguns ficaram com o fígado e o baço despedaçados, outros têm lesões vasculares graves. Tivemos um caso muito triste de um homem que estava a caminhar do lado de fora da entrada do hospital quando foi alvejado na cabeça por um atirador furtivo. A violência continua e a maioria dos pacientes que recebemos têm ferimentos com risco de vida”, prossegue.

Desde que a guerra mortal em Gaza começou a 7 de outubro passado, a violência tem aumentado em toda a Cisjordânia. Em Jenin, os médicos de emergências da MSF têm sido chamados ao hospital público quase todas as noites, enquanto incursões israelitas com tanques e tropas terrestres atacam a cidade. Ao longo do último mês, as forças israelitas mataram 30 pessoas e feriram pelo menos 162 mais na cidade de Jenin apenas*.

Os paramédicos locais no campo de refugiados de Jenin têm de usar um tuk-tuk, doado pela MSF, para percorrer as vielas estreitas do campo e recolher os feridos. As forças israelitas bloqueiam frequentemente a entrada do campo, tornando praticamente impossível que as ambulâncias entrem e saiam com feridos em estado crítico a tempo de lhes salvar a vida.

Do lado de fora do hospital, em redor de uma ambulância perfurada por buracos de balas, vários paramédicos olham inexpressivamente para a agitação da noite. Um conta que foram disparados tiros contra eles quando estavam a tentar chegar a pessoas feridas no campo, forçando-os a recuar com a ambulância e a protegerem-se junto ao chão durante 20 minutos até as forças israelitas terem partido.

As marcas da destruição podem ser vistas não só nas pessoas que estão no hospital de Jenin com ferimentos de balas e de estilhaços, mas também na própria cidade, onde as infraestruturas e edifícios simbólicos palestinianos foram demolidos e destruídos por escavadoras e tanques.

As incursões e incidentes violentos não ocorrem apenas em Jenin. Em toda a Cisjordânia, 165 palestinianos foram mortos desde 7 de outubro e mais 2 400 feridos, de acordo com as autoridades palestinianas.

Além disso, pelo menos 6 000 pessoas de Gaza que tinham empregos em Israel antes da guerra, mas cujas autorizações de trabalho foram entretando canceladas, veem-se agora a viver em centros de deslocados em toda a Cisjordânia, segundo o Ministério do Trabalho palestiniano.

Equipas da MSF visitam estes centros de pessoas deslocadas para fazer doações de provisões médicas, incluindo medicamentos para doenças não transmissíveis, e providenciam apoio em saúde mental. Alguns pacientes relataram aos profissionais da MSF que tinham sido espancados, humilhados e que sofreram abusos enquanto estavam detidos pelas forças israelitas nas semanas que se seguiram a 7 de outubro.

“Tratámos alguns pacientes que apresentavam sinais de terem sido amarrados e espancados, alegadamente por forças israelitas”, avança o responsável da MSF pelas atividades de saúde mental em Jenin, Yanis Anagnostou. “Contaram-nos que foram atormentados durante várias horas antes de serem deixados na fronteira da Cisjordânia.”

Violência e deslocações forçadas

No governorado de Hebron, no Sul da Cisjordânia, a violência envolvendo forças e colonos israelitas, as deslocações forçadas e as restrições às movimentações das pessoas têm tido impactos em todos os aspectos do dia-a-dia dos palestinianos. Habitantes da região expressaram às equipas da MSF – a trabalhar nesta área desde 2001 – que se sentem inseguros até a andar nas ruas e que o acesso a serviços básicos, incluindo os mercados alimentares e os cuidados de saúde, é profundamente limitado.

Desde 7 de outubro, pelo menos 111 famílias palestinianas, compostas por cerca de 905 pessoas, não tiveram outra alternativa que não a de deixarem as casas que possuiam na Cisjordânia, devido à violência e intimidação exercida pelas forças e colonos israelitas, segundo dados das Nações Unidas.

Nas colinas de Hebron Sul, de entre as dezenas de famílias deslocadas de casa, duas foram forçadas a partir depois de colonos lhes terem incendiado a residência, roubado painéis solares e barris de água e cortado os canos da água. A MSF providenciou cuidados em saúde mental e kits para deslocações às pessoas afetadas.

As equipas da organização médica-humanitária sediadas em Hebron estão também a disponibilizar artigos essenciais de ajuda, incluindo cobertores, colchões e aquecedores, assim como a prestar apoio em saúde mental às pessoas que estiveram expostas a violência ou que foram forçadas a partir de casa.

“Uma mulher, cuja casa ardeu por completo, contou-me como se sente ainda insegura, com medo e em perigo”, descreve a supervisora da MSF de promoção de saúde em Hebron, Mariam Qabas. “Ela disse-me: ‘Nunca pensei que teria de deixar a minha terra ou a minha casa desta forma, mas não posso pôr em risco os meus filhos e a minha família. Não consigo ver um futuro, de tal forma me sinto indefesa e impotente.’ E estas são reações completamente normais a circunstâncias tão anormais, em que as pessoas enfrentam violência intensa e insegurança.”

A MSF insta as autoridades israelitas a exercerem moderação na Cisjordânia, a porem fim à violência e deslocações forçadas de palestinianos e a pararem de impor medidas restritivas que impedem a capacidade de os palestinianos acederem a serviços essenciais, incluindo cuidados médicos.

À medida que os bombardeamentos e a punição colectiva das pessoas em Gaza prosseguem sem diminuir, e a ilegalidade e o derramamento de sangue se espalham para a Cisjordânia, são mais desesperadamente necessários que nunca um cessar-fogo e uma trégua humanitária.

Como muitos outros habitantes de Gaza que foram deslocados para a Cisjordânia, Zouhir segue atentamente o que está a acontecer em Gaza, num pavilhão desportivo lotado em Jenin, onde ele e centenas de outros trabalhadores deslocados dormem. “Hoje, o nosso sofrimento é estarmos longe dos nossos filhos e das nossas famílias”, conta.

“Falamos com os nossos filhos que estão em Gaza e choramos. Gostava que me mandassem de volta para Gaza, onde estão os meus filhos e os meus netos. O nosso sofrimento é que estamos impotentes e não podemos fazer nada”, lamenta Zouhir.

*números do Ministério da Saúde palestiniano

 

As atividades médicas e humanitárias da MSF na Cisjordânia foram afetadas pela escalada da violência e pelas reforçadas restrições às movimentações que limitam o acesso das pessoas a serviços essenciais, incluindo cuidados de saúde. Para se adaptarem à situação, as equipas médicas da MSF estão a providenciar consultas por telefone aos residentes palestinianos e pessoas deslocadas, e a encaminhar pacientes para receberem tratamento médico, cuidados em saúde mental e serviços sociais. As equipas da MSF em saúde mental estão também a prestar primeiros-socorros psicológicos, aconselhamentoo e psicoterapia, maioritariamente de forma remota. Na cidade de Nablus, na Cisjordânia, a MSF continua a disponibilizar cuidados em saúde mental a habitantes locais.

A MSF doou provisões médicas, incluindo kits cirúrgicos, ao hospital Ahli, em Hebron, e kits de primeiros-socorros a pontos de referência comunitários em Beit Ummar, Al-Rashaydeh e no centro de cuidados de emergência em Um al-Khair. Foi ainda prestado apoio, incluindo formação de pessoal, no Hospital Al-Mohtaseb na cidade velha de Hebron. A MSF continua a avaliar a situação existente nos hospitais em toda a Cisjordânia.

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