Histórias de aborto seguro em Moçambique

“Não quero ter um filho sem dignidade”, sublinha Michelle, paciente da Médicos Sem Fronteiras (MSF) com 34 anos

Aborto em Moçambique
© Miora Rajaonary

O aborto inseguro é uma das principais causas de mortalidade materna a nível mundial. Nos países onde os cuidados de aborto são demasiado difíceis de aceder, as mulheres não têm outra escolha senão recorrer a métodos inseguros para interromper a gravidez.

Em 2014, para reduzir o elevado número de mortes devido a abortos inseguros, Moçambique legalizou o aborto atè às 12 semanas, ou mais, em casos de violação, incesto e anomalias fetais graves. É um cuidado essencial que é prestado sem custos, mas mesmo que o aborto seja gratuito e legal persistem ainda outro tipo de barreiras, como o estigma e a desinformação, que podem ainda dificultar o acesso a cuidados de aborto seguro.

A Médicos Sem Fronteiras (MSF) presta esse tipo de cuidados na cidade da Beira, assim como em comunidades onde as mulheres – sobretudo profissionais do sexo e adolescentes – são frequentemente excluídas dos serviços de saúde ou onde podem evitar procurar cuidados de aborto seguro devido ao estigma ou à discriminação. Para reforçar o acesso a esses serviços em toda a cidade, a equipa da MSF também apoia formações a profissionais que trabalham em clínicas geridas pelo Ministério da Saúde de Moçambique.

Na Beira, a maioria dos abortos são medicamentosos, em que as pacientes recebem uma combinação de comprimidos de mifepristona e misoprostol para tomar em casa. Décadas de investigação científica demonstram que estas substâncias terminam uma gravidez de forma segura e eficaz em mais de 95 por cento dos casos, com menos de 1 por cento de probabilidade de complicações graves. A equipa orienta as pacientes durante o processo com antecedência para que saibam o que esperar e só precisem de voltar à clínica se tiverem dúvidas ou complicações.

Conversámos com mulheres que fizeram um aborto e com a equipa de saúde que as apoiou durante o processo, nas clínicas comunitárias geridas pela MSF e nas clínicas do Ministério da Saúde na Beira. Perguntámos se gostariam de partilhar a história delas: aqui está o que nos disseram, nas suas próprias palavras. Todos os nomes das pacientes foram alterados.

 

Michelle, 34 anos, trabalhadora do sexo e mãe

Aborto seguro na Beira
Michelle segura um dos três filhos. © Miora Rajaonary, 2023.

“Não quero ter um filho sem dignidade.

Fiquei grávida porque o preservativo rebentou. O meu filho mais novo tinha apenas um ano. Fui ao centro de saúde e fui atendida por uma funcionária da MSF. O teste de VIH foi negativo. Aí fiz o teste de gravidez e deu positivo. Comecei a chorar.

A Paula [enfermeira da MSF] perguntou-me: ‘O que quer fazer?’ Eu disse que não queria continuar com a gravidez — foi um acidente. Eu não conseguiria, seria muito caro. Eu não conheço o pai. O melhor para mim, seria mesmo interromper essa gravidez.

Deram-me um comprimido para tomar na clínica, e mais comprimidos para tomar em casa, para pôr debaixo da língua, depois da refeição. E foi isso que fiz. Antes de partir, pedi um implante anticontracetivo para não engravidar novamente.

Muitas pessoas fazem abortos inseguros. O curandeiro tradicional dá-nos alguns medicamentos para tomar e podemos morrer. Não sei como conseguir o medicamento [certo] para tomar sozinha, mas quando venho ao centro de saúde, eles sabem e podem ajudar-me.

No posto de saúde, quando apresentamos as nossas preocupações, conseguimos receber ajuda. Com os curandeiros tradicionais nós não recebemos nenhum apoio. No posto de saúde não sofremos abusos, não pagamos nada. Não é permitido deixar as pessoas simplesmente a morrer.”

 

Glória, 23 anos

Aborto seguro na Beira, Moçambique
Glória fala com uma enfermeira da MSF no centro de saúde da Ponta-gêa, na Beira, Moçambique, onde a MSF presta apoio. © Miora Rajaonary, 2023.

“Eu tinha 20 anos quando fiz o meu primeiro aborto. Fi-lo de maneira errada, em casa e sem nenhum apoio.

Fiquei com medo de encarar a enfermeira. Sempre houve boatos no bairro de que não dava para ir ao posto de saúde porque pedem para ser acompanhada por um responsável e pedem testemunhas e coisas que não conseguimos dar. Disseram-me que as enfermeiras iriam cobrar por estes serviços. Isso é um mito. Existem muitos mitos sobre o posto de saúde e foi por isso que tive medo de lá ir.

Correu mal. Foi assustador e passei por isso tudo sozinha. Tive medo de perder a vida – então fui a um posto de saúde e eles ajudaram-me.

Na segunda vez [que abortei], fui ao posto de saúde e senti-me melhor. Disseram-me que se houvesse algum problema eu poderia voltar – e frisaram: “Nós vamos ajudá-la”. Foi muito bom e seguro. Não aconteceu nada do que dizem no bairro. Eu encaminharia para o posto de saúde qualquer amiga que esteja nesta situação, e contaria como fui tratada.”

 

Emily, 34 anos, trabalhadora do sexo e mãe, vinda do Zimbabwe

Aborto seguro na Beira, Moçambique
Emily é fotografada de costas para proteger a sua identidade. © Miora Rajaonary, 2023.

“Tomei a decisão [de abortar] porque, primeiro, o meu filho aqui na Beira ainda era pequeno, e segundo, eu tinha-me separado do meu marido e depois reconciliado, por isso esta gravidez não foi planeada.

Eu venho sempre aqui; esta clínica ajuda-nos com questões relacionadas com o nosso trabalho sexual. Explicaram que se eu tivesse algum problema, deveria voltar. Mas estava tudo bem, não tive problemas.

As pessoas partilham informações, especialmente entre mulheres como eu, que trabalham com sexo. Somos livres, partilhamos todos os nossos segredos. Conhecemo-nos como amigas e ninguém se ri de ninguém, porque vivenciamos tantas coisas diferentes no nosso trabalho.”

[Nota: As mulheres que procuram cuidados de aborto seguro muitas vezes dizem aos nossos profissionais as razões da sua decisão, mas não são obrigadas a fazê-lo.]

 

Cintia Feliciano, enfermeira e chefe dos serviços de maternidade e aborto seguro da MSF no Centro de Saúde de Munhava, na Beira

Serviços aborto moçambique
Cintia fala com um paciente no Centro de Saúde da Munhava, na Beira. © Miora Rajaonary, 2023.

“Trabalho nos cuidados de aborto seguro desde 2020. Não tenho problemas em fornecer este serviço. No início, não concordei por causa da religião, a comunidade e mitos em geral. Mas depois descobri que muitas pessoas estavam a morrer devido a abortos inseguros. Então, para evitar mortes maternas, acabei por aceitar. Hoje realizo abortos seguros sem preconceitos.

Alguns mitos em torno do aborto que ouvi na comunidade incluem: se fizermos um aborto, não poderemos ter mais filhos; fazer um aborto é pecado; se fizermos um aborto, não poderemos cozinhar para a família ou que isso matará os nossos familiares.

Tentamos clarificar estes mitos conversando com as pessoas. Damos palestras aqui no posto de saúde, mas também vamos às comunidades. Conversamos com os líderes comunitários para divulgar informações porque as pessoas respeitam os líderes do bairro e as parteiras tradicionais. [Algumas] pessoas ainda recusam, mas a maioria está a começar a aceitar.

Os meus amigos e familiares ainda acham que o aborto é um pecado. Até me dizem que não irei para o céu. Outros perguntam-me: “ainda comunga na igreja?”

De vez em quando, sou atingida pelo estigma, outras vezes fico cabisbaixa, mas aí penso na paciente e pronto!”

 

Joana, 18 anos, Estudante

“Aos 15 anos fiz um aborto, mas não foi seguro, não fui ao posto de saúde. Fiz em casa com remédios tradicionais – raízes de árvores e comprimidos – e tive complicações. Fiquei muito doente e comecei a perder sangue, e então tive de ir ao posto de saúde, e transferiram-me para o hospital central.

Lá  no hospital não me puderam ajudar e queriam mandar-me de volta para casa. Mas o meu pai não queria ver-me a sofrer. Teve de fazer muitos sacrifícios e mandou-me para uma clínica [privada] – apesar de ser difícil para ele, nunca se mostrou desmotivado. Cuidaram de mim lá, examinaram-me, e deram-me sangue. Fiquei lá três dias. Quando voltei para casa, continuei a sentir dores, mas aos poucos, comecei a melhorar.

Eu disse tudo ao homem com quem estava a namorar. Ele nem me ligou, e acabou por me deixar.

A minha mãe não queria que eu parasse de estudar. Sou a mais velha e também cuido dos meus sete irmãos. Então, com uma criança não teria funcionado. Também fiz isto para que minha mãe não tivesse de fazer sacrifícios. Ela e o meu pai trabalham.

Vim até esta clínica para colocar um implante anticoncecional. A minha mãe aceitou. Agora sinto-me feliz.

Os cuidados contracetivos ajudam-nos, porque neste bairro as meninas de 13 e 14 anos correm o risco de engravidar. Mas desde que este projecto chegou aqui, que temos acesso à proteção. As pessoas chegam aos 18, 19, 20 anos sem engravidar.

Muitas pessoas também fazem abortos seguros. O aborto inseguro – com riscos de sangramento e morte – já não acontece.

A comunidade conhece bem este projeto, tem ajudado muita gente.

Depois de terminar a escola, gostaria de praticar medicina. Assim como fui ajudada, também gostaria de um dia ajudar alguém.”

 

 

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