Médica paulista atua em difícil contexto do Monte Elgon

A paulista Cristiane Emi Tsuboi está desde fevereiro na região, marcada por conflitos entre grupos étnicos, que deixam grande parte da população sem acesso a cuidados de saúde

Em abril de 2007, conflitos entre dois grupos étnicos da região de Monte Elgon, região no oeste do Quênia que faz fronteira com Uganda, fizeram com que Médicos Sem Fronteiras (MSF) instalasse duas clínicas na área. Com a violência pós-eleitoral, os problemas de insegurança e falta de acesso à saúde se agravaram, deixando a população já vulnerável vivendo sob condições ainda mais precárias.

A violência fez com muitas pessoas deixassem suas casas e centros de saúde fossem fechados. Desde fevereiro deste ano, a médica brasileira Cristiane Emi Tsuboi faz parte da equipe de MSF que trabalha para tentar amenizar o sofrimento da população através da assistência de saúde. A partir desta sexta-feira, essa paulista de 28 anos, que faz sua primeira missão com MSF, vai contar um pouco mais sobre seu trabalho em seu Diário de Bordo. Abaixo, Cristiane fala sobre o projeto.

Como é o projeto de MSF no Monte Elgon? Que tipo de atendimento vocês fazem?
Cristiane Emi – Após o início dos conflitos tribais, a violência fez com que alguns centros de saúde fossem fechados. Os funcionários se sentiram ameaçados e fugiram. Em outros lugares, a população não consegue acessar os serviços de saúde existentes por questões de segurança. Há muitos ataques nas estradas realizados por milícias ou tribos rivais. Ainda há lugares distantes que nunca foram providos com serviços médicos. Dentro deste contexto, MSF trabalha em cooperação com o Ministério da Saúde, fornecendo atendimento médico, vacinações, atendimento pré-natal, planejamento familiar, suporte psicológico, promoção se saúde, atendimento de urgência e emergência para pacientes sem condições de acessar as estruturas em funcionamento. Além disso, em diversos momentos preenchemos os “buracos” do sistema nas estruturas existentes ativas.

Qual é a sua função na equipe?
Cristiane – Sou encarregada do departamento médico nesta missão. Meu trabalho consiste não apenas no atendimento médico. Sou também responsável por uma equipe de 15 pessoas, planejo as atividades, supervisiono o atendimento, faço o acompanhamento dos pacientes encaminhados para outros serviços de referência, reuniões, coleta da dados e levantamentos epidemiológicos, entre outros. Ainda sou encarregada pela imunização nas áreas não cobertas pelo sistema público de saúde, pelo atendimento inicial e seguimento dos casos de violência sexual e profilaxia pós-exposição ao HIV.

Quais são os principais problemas de saúde enfrentados pela população de Monte Elgon?
Cristiane – A população de Monte Elgon não difere muito de qualquer outra região rural em um país na África sub-sahariana. A morbidade é semelhante. Entretanto, eles sofrem pela dificuldade de acesso. Alguns casos de fácil manejo em outras localidades se tornam complexos nesse contexto. Por exemplo, um paciente com tuberculose em Nairóbi vai ao posto de saúde, colhe material para exame e vai para casa. Após dois dias, volta para verificar o resultado, recebe o tratamento e faz todo o seguimento no posto de saúde mais próximo de sua casa. Nessa região, precisamos levar o paciente para o hospital local, ele precisa ser admitido na enfermeria por não ter acomodação, permanece até o fim da investigação (em diversos casos pode durar mais de uma semana), recebe o tratamento e precisa voltar para o hospital do distrito para seguimento pelo menos uma vez por mês nos próximos seis meses. Todas essas movimentações dependem basicamente de MSF, uma vez que o transporte público local não funciona desde o início dos conflitos tribais.

Houve algum caso que te marcou em particular?
Cristiane – Durante a operação militar, não conseguimos acesso a uma localidade por duas semanas.A população encontrava-se isolada, a única estrada de acesso não era segura, diversos ataques eram relatados. Quando finalmente fomos autorizados, encontramos uma paciente de 19 anos que havia caído na fogueira há 14 dias e teve 18% do corpo queimado. Ela permaneceu esse tempo todo sem qualquer atendimento pela dificuldade de acesso. Quando a examinei pela primeira vez, não conseguia nem acreditar como ela ainda estava viva. Passada a fase aguda do processo, ela estava totalmente séptica. Fiz o debridamento cirúrgico (apesar de não ser especializada em cirurgia) e ainda hoje faço o curativo diariamente.

Qual foi o maior desafio enfrentado por você?
Cristiane – Consigo lidar com a adversidade do meio, escassez de recursos e grande carga de trabalho, mas o que consome boa parte da minha energia é conviver com o descaso com os pacientes e falta de motivação para o trabalho de boa parte dos funcionários do sistema público de saúde.

Como é seu dia-a-dia?

Cristiane – Moro na mesma casa que todo o resto da equipe. Somos mais de 20 pessoas em uma casa de cinco quartos, divido o quarto com uma conselheira. Após o café da manhã, temos uma reunião geral, onde além de informações administrativas, discutimos o plano de ação deste dia. Logo depois, vou bem cedo para o hospital local fazer o curativo da minha paciente com queimadura, visito todos os pacientes internados e checo o tratamento que estão recebendo. Passo o dia todo nas clínicas móveis. Como não falo o idioma, e demoraria muito para fazer as consultas com a ajuda de um tradutor, fico na farmácia, vacina, curativos, suturas e discuto os casos mais complexos com os técnicos clínicos (pessoas treinadas para fazer consultas. No Quênia, grande parte dos serviços de saúde e das consultas são realizadas por eles). Durante todo o dia, ainda coordeno o serviço nas outras clínicas pelo rádio ou celular. Por vezes, recebemos chamadas de emergência (a qualquer hora do dia, inclusive fim de semana), e na maioria das vezes eu vou de carro até o local avaliar o paciente, fornecer o tratamento, assegurar o seguimento ou encaminhar para o hospital.

No fim do dia, volto para casa, tomo banho de caneca (busco água quente numa fogueira no quintal), coleto todas as informações relevantes do dia e faço relatórios, forneço as medicações a serem usadas no dia seguinte às equipes. Toda quinta-feira à noite, faço uma reunião didática com meus técnicos clínicos e enfermeiros para discutirmos temas relacionados a nossa prática diária. Uma vez a cada 15 dias temos uma reunião chamada “Reunião de família”, onde todo a equipe discute questões domésticas.

Durante os fins de semana, na maioria deles, fico na base pronta para qualquer emergência. Aproveito para escrever mais relatórios, organizar a farmácia e o material médico, esterilizar nosso material cirúrgico e quando possível, descansar.

Outros brasileiros trabalham com MSF no Quênia. Você tem oportunidade de encontrá-los?
Cristiane – No Quênia, trabalhando com MSF Bélgica, no momento, somos quatro brasileiros. Eu sou a única fora de Nairóbi, então para mim o contato é bastante limitado. Mesmo assim, falo frequentemente com Fábio (de Souza, médico) pelo telefone, discutimos casos, dividimos angústias. Esse último fim de semana fomos juntos para Mombasa, iremos viajar juntos de novo nas nossas férias. Essa semana tive a oportunidade de conhecer a Lúcia (Aleixo, médica) e conversamos bastante.

O que você diria a uma pessoa que, como você, sonha em trabalhar com Médicos Sem Fronteiras?
Cristiane – Não hesite!!! Não me arrependo de ter aberto mão da minha vida bem estabelecida e confortável para estar aqui. Cada pequena coisa que deixei para trás está sendo trocada por sorrisos de pessoas que não teriam a chance de sorrir hoje. O trabalho é duro, mas muito gratificante. Nesse pequeno pedaço de terra esquecido por todos consigo ver que é possível mudar a vida das pessoas e fazer alguma diferença. Faço valer a pena cada minuto gasto estudando durante a faculdade.

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