Médico brasileiro conta sua experiência com MSF no Burundi e na Costa do Marfim

Alexandre Charão, médico cirurgião, escreve artigo sobre as atividades realizadas durante os seis meses que trabalhou com MSF

"A lancha andava baixinho na Baía de Paranaguá e o tempo passava lentamente, ainda mais quando se está no quarto ano de Medicina. Um amigo meu, também acadêmico de medicina e voluntário no litoral do Paraná, me perguntou o que eu faria depois da faculdade. Eu disse: trabalharei com Médicos Sem Fronteiras, na África. O ano era 1995.

Dez anos depois, em fevereiro de 2005, estava eu desembarcando no aeroporto do Rio de Janeiro, vindo da Costa do Marfim. E do Burundi. E do Mali, e da Tanzânia. Na bagagem, muito mais que máscaras e tecidos. Uma experiência incrível, de humanidade, de desapego material, de dedicação aos mais carentes, àqueles que nada têm. Foram seis meses de muito trabalho, mas também de muito prazer, muita alegria em conhecer outros lugares, outros povos, outros voluntários, de identificação não só com indivíduos mas também com a organização de uma forma geral.

Como o meu contato foi com a seção de MSF-França, fui para Paris, onde fiquei 5 dias assistindo aos briefings sobre a estrutura da ONG e o contexto do Burundi, país para o qual eu fora designado. Fala-se de tudo, da situação política, da economia, do sistema de saúde, dos principais problemas enfrentados pela equipe no terreno, das causas da nossa presença lá. Geralmente é a guerra, a AIDS ou a fome. Ou todos juntos.

Na sexta-feira, dia 28 de agosto de 2004, eu embarcava para Bujumbura, capital do Burundi, 6 milhões de habitantes, taxa de natalidade de 6,6 crianças por mulher. Passei dois dias lá e, na segunda-feira, 5 horas de carro, me conduziram para Makamba, quase fronteira com a Tanzânia.

George, Arnaud, Thomas, Agnes, Letitia, Natasha (franceses), Salvatore (congolês), Magdalena (colombiana), Jeroen (holandês) compunham a equipe de expatriados, que junto com a equipe nacional (burundianos) formavam uma excelente equipe local. Fiquei três meses. E sinto saudades. Trabalho, conversas, aprendizado, troca cultural. Medicina, muita medicina..

De segunda a sexta há um trabalho dito de rotina, consultas e cirurgias marcadas. Há uma pausa entre 12h e 14h, que é muito comum em vários países da África, e o trabalho recomeça na parte da tarde, até 18h. À noite e nos fins de semana o trabalho continua, mas somente para emergências, ou seja, ficávamos em casa ou na cidade, mas com um rádio perto para que os enfermeiros de plantão pudessem nos localizar. Devido à situação do país, não era permitido fazer passeios para longe da cidade. A cada três meses havia uma semana de férias. Estas regras de segurança são variáveis, e cada chefe de missão aplica a que achar necessária ao contexto.

No hospital, o dia começava com uma visita nas enfermarias, das 8h até as 9h. Doenças mais comuns: infecções, do pé até o olho, fraturas, ferimentos por armas de fogo ou brancas (lanças, machadinhas). Número de pacientes cirúrgicos: 54, número parecido com os leitos de cada uma das outras três especialidades: Pediatria, Clínica Médica, Ginecologia.

Os pacientes eram pobres. Muito pobres. Óbvio, não? Não, não era como no Brasil, não era como no hospital público do Rio, não era como no Mato Grosso. Era pior, muito pior e muito mais triste. Os hospitais na África não dão comida, a família tem que se virar, para cada paciente há um ou dois acompanhantes responsáveis pela preparação das refeições, que é feita a lenha, em um espaço comum no terreno do hospital. À noite eles dormem no chão das enfermarias, amontoados. Se houver uma emergência à noite, tem que acender a luz e pedir para todos saírem do caminho para poder passar. Depois de tudo resolvido eles voltam para suas esteiras no chão e dormem até às 7h, hora de catar lenha e esquentar a refeição da manhã. Muitas vezes, na visita das 8h, ainda havia alguns atrasados e a enfermeira tinha que expulsá-los do quarto para a equipe poder ver os pacientes.

Havia um laboratório muito simples no hospital, o raio-X estava quebrado e era feito em outro local, a duas horas de carro. O teste de HIV não é feito, pois não há tratamento disponível. Só o sangue doado é testado, e 20% é recusado por estar contaminado com HIV ou HBV (hepatite). Doenças erradicadas ou pouco freqüentes em outros países ainda são muito comuns, como febre tifóide, tuberculose, malária.

Na saída da cidade há um cemitério, e era visível o aumento dos túmulos. A cada semana que eu passava lá havia novas tumbas. Todas muito simples, com cruzes de madeira. Quanto mais pobre o país, maior a quantidade de túmulos no cemitério, quanto mais rico maior a qualidade deles.

E assim se passaram estes três meses na primeira missão com MSF. A segunda já estava programada, a partir do dia 15 de dezembro, na cidade de Bouaké, na Costa do Marfim. Como havia um intervalo de 2 semanas, eu fui para a Tanzânia, onde foi possível conhecer alguns parques nacionais como o Lake Manyara e a Cratera do Ngorogoro. Depois fui para o Kilimanjaro, para uma ascensão de seis dias e completei este tour na África com uma visita à ilha de Zanzibar, um paraíso no Oceano Índico.

Uma nova passagem por Paris me permitiu respirar um pouco da civilização ocidental e fiz os debriefings da missão passada e os briefings da nova missão. O contexto político era outro: um país dividido em dois pela guerrilha, com uma zona tampão entre os dois lados mantida pelas Forças de Paz da ONU. O hospital, muito maior, já tinha sido um centro de formação universitária e fora abandonado quando os rebeldes tomaram a cidade de Bouaké, com 600 mil habitantes (Bujumbura tinha 300 mil). Andando pela cidade, a segunda maior da Costa do Marfim, víamos jovens rebeldes, armados com Kalashnikov russos, vestidos como o Rambo, em pick-ups adaptadas com metralhadoras atrás. Algumas delas portavam insígnias de ONGs humanitárias que tinham tido seus veículos requisitados pelos rebeldes.

As doenças eram praticamente as mesmas, a diferença era o número expressivo de acidentes de automóveis, que faziam lotações e andavam em situações precaríssimas, sem freio e sem luz. Quando havia um acidente, eram 5 ou mais pacientes que chegavam de uma vez só, superlotando a emergência e nos obrigando a atender os mais graves. Havia médicos nacionais, ao contrário do Burundi e enfermeiros também. Como eles estavam em zona rebelde, eles não recebiam o salário do governo, e MSF os pagava então. Quando eles faziam uma viagem para o sul, na zona governamental, eles eram achacados pelos soldados, pois estavam cuidando da população do norte, que segundo eles, era toda composta por rebeldes. É como se alguém fosse atender num posto de saúde na Favela da Maré e ao sair fosse parado pela polícia e acusado de ajudar os traficantes. Non-sense completo, e o pior é que é o próprio governo que não oferece saúde aos mais pobres, causando um vazio que só pode ser preenchido pelos trabalhadores voluntários.

Fiquei seis semanas lá, conheci novos expats, fiz amizades com novas pessoas, conheci um povo e um país bem diferente do Burundi. Meu obrigado e meus parabéns à toda a equipe local, médicos, enfermeiras, motoristas, sem esquecer é claro da Ivete, a excelente cozinheira da casa dos voluntários.

No final de janeiro voltei a Abidjan, a cidade mais importante do país, e fui para Bamako, a capital deste país tão hospitaleiro e musical que é o Mali. Timbuctu, Rio Niger, região Dogon foram alguns dos pontos altos. Voltei para Paris e de lá tomei o avião para o Rio de Janeiro. Meu sonho de quando era acadêmico tinha sido realizado.

Dia 8 de maio iniciei uma nova missão, em Monróvia, capital da Libéria, e depois devo ir para Port-au-Prince, no Haiti".

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