MSF e quatro ONG denunciam à Comissão Europeia lei italiana que dificulta resgates no mar

As cinco ONG instam a Comissão Europeia a rever a lei italiana 15/2023 e a prática de enviar os navios humanitários para portos longínquos

© MSF/Candida Lobes

Cinco organizações não-governamentais (ONG) apresentaram uma queixa à Comissão Europeia, denunciando a lei italiana 15/2023 e as práticas levadas a cabo pelas autoridades italianas de atribuírem locais para o desembarque de sobreviventes que ficam extremamente longe das áreas de resgate.

As ONG que apresentaram a denúncia são a Médicos Sem Fronteiras (MSF), a Oxfam Itália, a SOS Humanity, a Emergency e a Associação para os Estudos Jurídicos sobre Imigrações (ASGI, na sigla em inglês). Defendem que há sérias dúvidas quanto à aplicabilidade desta lei no quadro do direito europeu e que vai contra as obrigações dos Estados-membros de liderarem atividades de buscas e salvamento, em conformidade com o direito internacional.

“A Comissão Europeia é a guardiã dos tratados da UE e tem um papel a desempenhar para garantir que os Estados-membros respeitam o direito internacional e da União Europeia”, frisa Giulia Capitani, assessora de políticas migratórias da Oxfam Itália. “Devia defender e proteger os direitos fundamentais de todas as pessoas na Europa, mas, em vez disso, são as ONG de buscas e salvamento que preenchem o vergonhoso vazio deixado pelos Estados-membros no mar. Em vez de obstruírem o trabalho destas ONG, os estados deviam inclui-las na criação de um mecanismo adequado de atividades de resgate no mar.”

A Comissão Europeia é a guardiã dos tratados da UE e tem um papel a desempenhar para garantir que os Estados-membros respeitam o direito internacional e da União Europeia.” – Giulia Capitani, assessora de políticas migratórias da Oxfam Itália.

 

A lei 15/2023

Resgate SAR MED 07/2023
Um resgate levado a cabo pela MSF a 3 de julho de 2023. Foto: MSF/Michela Rizzotti

Em janeiro, foi aprovado em Itália um decreto que se converteu em lei no mês de março. Com a lei 15/2023, as embarcações de buscas e salvamento passaram a estar proibidas de realizar mais do que um resgate por operação, devendo depois navegar imediatamente para um porto de segurança atribuído pelas autoridades. Isto significa que, após um resgate, os navios humanitários não podem prestar apoio a mais embarcações em perigo.

Esta lei obriga também os capitães dos barcos a fornecer várias informações às autoridades italianas sobre os salvamentos realizados, o que tem levado as autoridades a solicitar informações excessivas.

Como se não bastasse, os efeitos desta nova lei estão a ser agravados pela recente prática das autoridades italianas, que têm atribuído portos extremamente distantes das zonas de buscas e salvamento para o desembarque de pessoas resgatadas. Naturalmente, os portos no Sul de Itália ficam muito mais perto, mas os navios têm sido frequentemente mandados para longínquos portos no Norte do país. Isto aumenta consideravelmente o tempo da viagem e limita a presença das ONG nas zonas de buscas e salvamento. Esta política não está incluida em nenhuma legislação, mas tornou-se numa prática comum desde dezembro de 2022.

As cinco ONG denunciantes consideram que a combinação destas medidas impõe restrições injustificadas às operações de buscas e salvamento e limitam drasticamente a capacidade de salvar vidas no mar.

“Cada dia que passamos fora das zonas de buscas e salvamento, com os barcos retidos no porto ou a navegar para um local distante, é um dia com pessoas em perigo no mar”, alerta o coordenador de atividades da MSF, Djoen Besselink. “A lei é dirigida às ONG, mas quem paga o preço real é quem está em apuros no Mediterrâneo.

A lei é dirigida às ONG, mas quem paga o preço real é quem está em apuros no Mediterrâneo.”- Djoen Besselink, coordenador de atividades da MSF.

O elevado tempo de viagem até ao Norte de Itália agrava também a saúde física e mental dos sobreviventes a bordo. “Atribuir portos seguros a mais de 1 000 quilómetros de distância do local de resgate prejudica o bem-estar físico e psicológico dos sobreviventes”, explica Josh, o capitão do navio de resgate Humanity 1 da SOS Humanity, que quis revelar apenas o primeiro nome.  “As 199 pessoas que resgatámos recentemente, incluindo grávidas e bebés, viram-se obrigadas a percorrer mais de 1 300 quilómetros para desembarcar em Itália, embora houvesse outros portos italianos muito mais perto.”

Operações de buscas e salvamento da MSF em julho de 2023. Foto: MSF/Michela Rizzotti

“As pessoas que resgatamos vêm de países afetados por guerras, alterações climáticas e violações dos direitos humanos”, sublinha Carlo Maisano, coordenador do Life Support, o navio de resgate da Emergency. “Muitas delas estão num estado de grande fragilidade, que se agrava ao passar ainda mais tempo no mar”, acrescenta.

O aumento das distâncias afeta também as próprias ONG. “A prática de atribuir portos longínquos aumenta os custos de combustível e impacta financeiramente as organizações. Tudo isto terá consequências na capacidade de salvar vidas no futuro”, conclui Maisano.

A 23 de fevereiro de 2023, a lei 15/2023 foi aplicada pela primeira vez. Nesse dia, as Autoridades Portuárias de Ancona ordenaram a imobilização por 20 dias do navio da MSF, o Geo Barents, e impuseram à organização uma multa de 5 000 euros. Tudo isto por não terem sido facilitadas informações específicas que nunca haviam sido solicitadas.

A prática de atribuir portos longínquos aumenta os custos de combustível e impacta financeiramente as organizações. Tudo isto terá consequências na capacidade de salvar vidas no futuro.” – Carlo Maisano, coordenador do Life Support

Desde então, as autoridades italianas ordenaram a imobilização de mais quatro navios*, durante um período de 20 dias cada, por infrigirem a lei 15/2023. No total, foram 100 dias perdidos, enquanto as travessias perigosas e os naufrágios continuavam no Mediterrâneo.

A MSF, a Oxfam Itália, a SOS Humanity, a ASGI e a Emergency instam a Comissão Europeia a rever a lei italiana 15/2023 e as práticas de atribuir portos distantes aos navios humanitários. Como guardiã dos tratados da UE, é responsabilidade da Comissão garantir que os Estados-membros cumprem a legislação e não criam obstáculos para as operações de salvamento das ONG.

 

 

Nota: A 13/07/2023, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução para apelar aos Estados-membros que mantivessem os portos abertos aos navios das ONG e atribuíssem portos de segurança o mais perto possível dos locais de resgate.

“O Parlamento Europeu aprovou uma resolução sobre a necessidade de ampliar os esforços para salvar vidas no mar e investir em atividades de buscas e salvamento lideradas pelos Estados-membros e pela UE. Urgimos a Comissão Europeia e os Estados-membros a levar a cabo esta resolução do Parlamento Europeu e investir urgentemente em mecanismos salva-vidas”, sublinhou o representante das atividades de buscas e salvamento da MSF, Juan Matías Gil.

“O Parlamento Europeu destacou também o papel da Comissão Europeia para garantir que os Estados-membros cumprem os deveres relacionados com as buscas e salvamento, em conformidade com o direito marítimo internacional”, acrescentou Juan Matías Gil.

 

*Os navios imobilizados foram:

O navio Aurora e o Mare*Go, operados pela Sea-Watch;

– O navio Sea-Eye, operado pela Sea Eye;

– O navio Louise Michel.

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