Novo decreto obstrui os esforços de salvamento no mar e causará mais mortes

ONG de resgate no Mediterrâneo instam à retirada da norma e rejeitam a mais recente tentativa de um Governo europeu de obstruir a assistência prestada a pessoas em perigo no mar

Geo Barents: equipas da MSF realizam operações de buscas e salvamento no Mediterrâneo central.
© MSF/Candida Lobes

Vinte organizações da sociedade civil que se dedicam a atividades de buscas e salvamento no Mediterrâneo central, entre elas a Médicos Sem Fronteiras (MSF), expressam profunda preocupação face à mais recente tentativa de um Governo europeu de obstruir a assistência prestada a pessoas em perigo no mar.

Um novo decreto-lei, assinado pelo Presidente italiano a 2 de janeiro passado, vai reduzir as capacidades de resgate no mar e, assim, torna ainda mais perigosa a zona do Mediterrâneo central – que é já uma das rotas de migrações mais mortais no mundo. Este decreto visa ostensivamente as ONG dedicadas às atividades de buscas e salvamento no mar, mas o custo real será pago pelas pessoas em fuga através do Mediterrâneo central e que se encontrem em situações de enorme perigo.

Desde 2014 que os navios civis de salvamento estão a preencher o vazio deliberadamente deixado pelos Estados europeus após terem interrompido as suas operações de buscas e salvamento. As ONG têm vindo a desempenhar um papel essencial para colmatar esta lacuna e evitar que se percam mais vidas no mar, respeitando sempre a legislação aplicável.

Apesar disso, Estados-membros da União Europeia (UE) – e mais proeminentemente, a Itália – há anos que tentam obstruir as atividades civis de buscas e salvamento mediante difamação, assédio administrativo e a criminalização de ONG e de ativistas.

Já existe um quadro jurídico abrangente para as atividades de buscas e resgate, como a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM, ou UNCLOS na sigla em inglês) e o Convénio Internacional sobre Busca e Salvamento Marítimos (Convénio SAR). Porém, o Governo italiano introduziu mais uma série de normas para as embarcações civis de buscas e salvamento, as quais impedem as operações de resgate e põem em ainda maior risco as pessoas que se encontrem em perigo no mar.

Entre outras normas, o Governo italiano exige que os navios civis de buscas e salvamento rumem imediatamente para Itália após cada resgate feito. Isto atrasa as operações de salvamento, uma vez que os navios costumam realizar múltiplos resgates ao longo de vários dias. Dar instruções às ONG para que se dirijam prontamente para um porto, enquanto outras pessoas se encontram em perigo no mar, contradiz a obrigação do capitão do navio em prestar assistência imediata às pessoas em risco, conforme está consagrado na CNUDM.

Este aspecto do decreto é agravado pela política recentemente adotada pelo Governo italiano de atribuir com maior frequência “portos distantes”, que podem ficar a até quatro dias de navegação da localização em que se encontram os navios de buscas e salvamento.

Ambas as estratégias estão concebidas para manter os navios de buscas e salvamento fora das áreas de resgate durante períodos prolongados e reduzir as suas capacidades de prestar assistência a pessoas em perigo no mar. As ONG estão já sobrecarregadas devido à ausência de operações de buscas e salvamento lideradas pelos Estados, e a menor presença de embarcações de resgate irá, inevitavelmente, resultar em que mais pessoas tragicamente morram afogadas no mar.

Outra questão levantada pelo decreto é a obrigação de recolher a bordo dos navios de buscas e salvamento dados dos sobreviventes que expressem intenção de solicitar proteção internacional e de partilhar essas informações com as autoridades. É dever dos Estados iniciar este processo e uma embarcação privada não é um lugar apropriado para o fazer. Os requerimentos de asilo devem ser exclusivamente processados em terra firme, após o desembarque num local seguro, e apenas depois de terem sido atendidas as necessidades imediatas, como clarificou recentemente o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.

Em geral, o decreto-lei italiano contradiz o direito marítimo internacional, os direitos humanos e o direito europeu, pelo que deveria desencadear uma enérgica reação por parte da Comissão Europeia, do Parlamento Europeu, dos Estados-membros da UE e das instituições europeias.

As organizações civis que participam em operações de buscas e salvamento no Mediterrâneo central instam o Governo italiano a retirar imediatamente o decreto-lei recentemente promulgado. E exorta também todos os deputados do Parlamento de Itália a oporem-se ao mesmo, impedindo que se converta em lei.

Não se precisa de outro quadro politicamente motivado que obstrua as atividades de salvamento de vidas, mas sim que os Estados-membros da UE cumpram finalmente as leis marítimas e internacionais existentes, e que garantam o espaço operacional para as organizações civis de buscas e resgate.

 

Organizações de resgate signatárias desta declaração conjunta: Emergency, Iuventa Crew, Mare Liberum, Médicos Sem Fronteiras, MEDITERRANEA Saving Humans, MISSION LIFELINE, Open Arms, r42-sailtraining, ResQ-People Saving People, RESQSHIP, Salvamento Marítimo Humanitario, SARAH-SEENOTRETTUNG, Sea Punks, Sea-Eye, Sea-Watch, SOS Humanity, United4Rescue, Watch the Med-Alarm Phone.

Organizações cossignatárias: Borderline-Europe Menschenrechte ohne Grenzen e.V. e Human Rights at Sea.

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