MSF presta socorro aos sobreviventes do naufrágio na Líbia

Entrevista com Anne-Cecilia Kjaer, gerente de atividades de enfermagem de MSF

“Recebemos um telefonema ontem de manhã dizendo que havia pessoas desembarcadas na base militar em Khoms. Chegamos por volta das 10h30. Nossa equipe foi composta por um médico, duas enfermeiras e um motorista.

Havia cerca de 80 pessoas, principalmente da Eritreia, Sudão, Egito e Bangladesh. Estava um dia muito quente. As pessoas sentavam-se contra uma parede para poder encontrar alguma sombra. Elas mal estavam vestidas – algumas usavam apenas uma toalha ou roupa de baixo. Elas estavam apenas sentadas à sombra, em estado de choque.

Identificamos casos críticos: algumas pessoas engoliram e respiraram muita água do mar e tinham dificuldades respiratórias. Alguns dos sobreviventes mostravam-se em situação bastante crítica, deitados no chão, parecendo cianóticas, com pele de cor cinza devido à falta de oxigênio. Elas estavam em uma situação realmente muito ruim.

Nosso médico examinou os casos urgentes, organizamos as pessoas para receberem soro e chamamos uma ambulância para levá-las ao hospital. No total, encaminhamos sete pessoas para centros de saúde locais.

Um homem do Sudão, que foi retirado da água, disse à nossa equipe que viu sua mulher e filhos se afogarem. Ele parecia espantado, apenas sentado em estado de choque.

Quando a situação ficou mais estável, examinamos cada pessoa com problemas médicos menos graves e distribuímos água e alimentos de emergência. Eles estavam com muita sede. Foram várias horas a bordo vendo o barco afundar a uma temperatura em torno de 40°C.

As pessoas tinham pequenas feridas, dores no estômago por engolir água salgada e estavam exaustas e traumatizadas.

Os sobreviventes com quem conversei estavam nas mãos de traficantes há muito tempo e apresentavam, em geral, más condições de saúde – pareciam desnutridas e anêmicas.

Os sobreviventes nos disseram que haviam deixado a costa da Líbia na noite de quarta-feira ao pôr-do-sol, possivelmente a bordo de três barcos amarrados uns aos outros. Alguns disseram que o barco onde estavam foi danificado, causando vazamento de água. Eles não conseguiram completar a jornada e tentaram voltar atrás. Disseram que estavam a alguns quilômetros da costa e o nível da água no barco não parava de subir.

Como eles continuaram em direção à costa, o barco começou a afundar. A maioria das crianças não sabia nadar e, mesmo quem podia nadar, acabou se afogando por causa do cansaço.

Relatos de testemunhas oculares dos envolvidos no resgate disseram que havia pelo menos 70 corpos na água. Os sobreviventes foram resgatados por pescadores que os trouxeram de volta a Khoms. Com base em depoimentos, havia pelo menos 300 pessoas nos barcos, incluindo 50 mulheres e crianças, e mais 100 pessoas em outro barco, mas esta informação não conseguimos confirmar.

Logo depois que chegaram a Khoms, outro grupo de 53 sobreviventes foi levado ao porto. Uma segunda equipe de MSF foi ao ponto de desembarque, onde prestou assistência de emergência.

À 1h da madrugada, outro grupo de cerca de 190 pessoas chegou ponto de desembarque – elas podem ter sido interceptadas pela guarda costeira da Líbia. Eram principalmente do Sudão, Eritreia e Somália e, entre eles, havia uma criança.

Mais uma vez, distribuímos comida e água e fizemos exames médicos. Não ficou claro se eles estavam entre as 400 pessoas que partiram na quarta-feira ou se faziam parte de outro grupo. Estamos tentando reconstruir a sequência dos fatos, mas quase nenhuma informação oficial confiável está disponível. As pessoas resgatadas estão em choque, muito traumatizadas e são basicamente nossa principal fonte de informação. As pessoas que ajudamos no desembarque deixaram o porto agora, mas não sabemos o paradeiro delas.

Nos próximos dias, vamos acompanhar as sete pessoas que nós encaminhamos ao hospital para verificar suas condições médicas. Elas não podem ser enviadas para centros de detenção – elas precisam receber moradia alternativa segura ou serem evacuadas para um país seguro.

A maioria a quem assisti ontem viveu experiências horríveis. Esses sobreviventes estão traumatizados e serão colocados em risco mortal novamente. Antes de sobreviver ao naufrágio, eles haviam atravessado o deserto, sido mantidos em cativeiro por traficantes, enfrentado violência e tortura. Então eles viram seus parentes se afogarem, e agora eles provavelmente serão colocados em algum tipo de prisão, em condições horríveis, ou desaparecerão sem deixar vestígios em um país em guerra, onde refugiados e migrantes estão particularmente expostos a tais situações alarmes e a níveis bem conhecidos de abusos.

Estou muito chateada e é muito difícil aceitar que pessoas que enfrentaram tal nível de violência e trauma estão sendo tratadas assim. Isso tem que acabar.

Você não pode nem imaginar como essas pessoas estão sofrendo. Uma vez que você está no meio delas – quando você tenta colocar palavras – então você percebe que não há palavras para descrever o sofrimento delas”.

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