Nova onda de violência na República Centro-Africana

Ataques às instalações médicas estão deixando os habitantes locais sem opções

Nova onda de violência na República Centro-Africana

Outra onda de violência está assolando a República-Centro Africana (RCA). Desta vez, o foco é Paoua, próximo à cidade de Markounda, no noroeste do país. No hospital de Médicos Sem Fronteiras de Paoua, dezenas de feridos foram tratados já nos primeiros dias do ano. Os pacientes relataram ataques indiscriminados, aldeias incendiadas e um grande número de pessoas mortas e feridas deixadas na mata.

A violência levou ao deslocamento de 66 mil pessoas, enquanto outras 20 mil fugiram para a fronteira com o Chade na tentativa de escapar de tiros, estupros e roubos. Esses ataques violam o direito internacional humanitário, bem como o direito nacional na RCA.

As perspectivas para este ano não são encorajadoras. "O sistema de saúde é quase inexistente e os constantes ataques contra instalações médicas, pacientes e ambulâncias tornam a situação ainda pior", diz Christian Katzer, gerente operacional de MSF para a RCA. "Milhares de pessoas não têm acesso à assistência médica e muitos morrerão por doenças evitáveis, como a malária, diarreia e infecções respiratórias, as três principais causas de morte em crianças com menos de 5 anos no país".

O ano de 2017 também foi de extrema violência para a população da RCA e se espalhou por diferentes regiões do país. Christelle, de 24 anos, uma das vítimas do ataque feito por homens armados do lado de fora do hospital em Batangafo, no norte da RCA, lembra do ocorrido: "A primeira bala atingiu uma garota de 13 anos", diz. "Eu caí no chão e eles continuaram atirando. Uma bala atingiu meu tornozelo. Outra bala atingiu uma criança de dois ou três anos que estava em um abrigo ao lado da parede do hospital. Ela morreu no mesmo instante”.

Christelle é uma das 16 mil pessoas que se abrigaram no hospital de Batangafo no final de julho, quando a luta se intensificou na região. Muitas famílias viram suas casas serem queimadas e seus vizinhos assassinados.

"Eu estava tentando ajudar uma família a se esconder dos homens armados que haviam entrado no hospital quando de repente dois deles nos encontraram", diz Debra, da equipe de Médicos Sem Fronteiras (MSF), que testemunhou um ataque ao hospital em Zemio, no sudeste da RCA, no dia 11 de julho. "Eles apontaram suas armas para nós e atiraram no bebê enquanto a mãe o segurava em seus braços".

Já Zemio foi novamente cenário de tiroteio, um mês depois do ocorrido em Batangafo. Tiros foram disparados contra 7 mil pessoas que se abrigavam no local. Este foi um marco central para os 22 mil habitantes de Zemio, que conseguiram fugir da cidade atravessando a fronteira para a vizinha República Democrática do Congo (RDC), onde agora são refugiados.

"Havia homens armados atirando para cima ao redor da nossa ambulância enquanto transferíamos um paciente com diarreia aguda para o hospital", diz Pelé, um supervisor de enfermagem de MSF em Bangassou, sudeste da RCA. "Eles estavam realmente nervosos, fazendo ameaças e não ouvindo ninguém". Pelé foi capturado por homens armados e mantido como refém durante várias horas com o resto da equipe de assistência de MSF e um paciente em 21 de agosto.

A situação em Bangassou piorou desde maio de 2017, com a maioria da população fugindo para a RDC.

Aproximadamente 2 mil muçulmanos buscaram refúgio no terreno de uma igreja católica, onde vivem com muito pouca assistência das organizações internacionais de ajuda humanitária.  

Christelle, Debra e Pelé são apenas três dos milhares de pessoas que, no ano passado, presenciaram o retorno da brutal violência a um país que ainda tenta se recuperar da sangrenta guerra civil de 2013 a 2014.

"No ano passado, tratamos pacientes que foram baleados, esfaqueados, batidos, queimados em suas casas e estuprados", diz Frédéric Lai Manantsoa, coordenador de projeto de MSF na RCA. "Em 2017, testemunhamos níveis de violência contra a população civil na RCA que lembraram os piores meses do conflito de 2013 e 2014".

Quase 40 ataques a instalações médicas, veículos e profissionais de saúde

As equipes de MSF na RCA não só ouviram histórias horríveis de seus pacientes. Elas também sofreram violência pessoal em todos os projetos da organização no país durante o ano passado. Em 2017, MSF sofreu uma média de três ataques por mês contra suas instalações médicas, veículos e funcionários. Esses ataques e os inúmeros outros incidentes contra civis e organizações em outros locais fizeram da RCA um dos países mais perigosos do mundo para trabalhadores humanitários em 2017.  

"Após o ataque ao hospital de Zemio, fui forçado a fugir para a RDC com minha família", diz Pierre Yakanza, assistente de coordenação de MSF em Zemio até alguns meses atrás, quando ele deixou a cidade para escapar da violência, juntamente com a maioria dos seus vizinhos. "Passei a noite toda e cruzei o rio em uma canoa. Não poderíamos ficar em Zemio – não há autoridade administrativa e qualquer um pode fazer o que quiser."

Uma em cada cinco pessoas neste país de 4,5 milhões de habitantes foi forçada a sair de casa em 2017 devido à violência. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) informou no fim de 2017 o maior número de pessoas deslocadas na RCA desde a crise de 2013: 688 mil.  E mais de 540 mil são agora refugiados em países vizinhos.  

Milhares foram deixados sem cuidados médicos

MSF tratou as pessoas feridas nesta nova onda de violência, bem como mulheres grávidas ou com doenças evitáveis ou crônicas cujas condições foram agravadas pela incapacidade de receber atendimento médico devido ao conflito.

O que marcou a violência na RCA durante 2017 foi seu efeito sobre o acesso das pessoas aos cuidados médicos, especialmente quando eles mais precisavam. Isso, combinado com o acesso reduzido das pessoas a alimentos, água, abrigo e educação, trouxe a população a um estado de extrema vulnerabilidade.

Anteriormente, os hospitais eram um dos poucos lugares onde as pessoas se sentiam seguras, com milhares de famílias se abrigando em áreas hospitalares por meses. Mas elas não estão mais seguras, como as equipes de MSF testemunharam no decorrer de 2017. No ano passado, ambulâncias foram impedidas de circular ou foram atacadas ao transportarem feridos e quando tiroteios indiscriminados aconteciam nas instalações médicas. Os pacientes foram removidos à força de suas camas e executados a sangue frio. Todos esses se tornaram eventos cotidianos na RCA, com consequências desastrosas para os pacientes. Os ataques do ano passado demonstram um completo desprezo pelos princípios humanitários e comprometem a capacidade de MSF de proteger os pacientes e funcionários. Em alguns lugares, como Bangassou, a violência e a insegurança alcançaram níveis tão altos que MSF foi forçada a tomar a difícil decisão de suspender as atividades, deixando, no caso de Bangassou, pacientes sem a assistência devida.
 

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