O diário da enfermeira encarregada de vacinar crianças numa das áreas mais remotas da RDC

Jessica Nestrell, de MSF, está na República Democrática do Congo com a missão de vacinar 100 mil crianças contra o sarampo. Para chegar até elas, Jessica terá que vencer muitas dificuldades. Veja a primeira parte do diário da enfermeira

Nos últimos 18 meses MSF vacinou mais de 500 mil crianças contra o sarampo em campanhas realizadas nas áreas mais remotas da República Democrática do Congo (RDC). O próximo estágio será a vacinação de outras 100 mil crianças em centenas de vilarejos da região de Basankusu, uma área cujo tamanho é metade da Bélgica. Somente acessada por canoas ou motocicletas. A enfermeira sueca Jessica Nestrell está coordenando a campanha de vacinação e irá enviar notícias freqüentes sobre o trabalho de MSF. Veja a seguir a primeira reportagem da enfermeira.

Planejando a campanha

“Mbandaka, a capital da Província Oriental da RDC fica situada logo abaixo da linha do equador. A umidade do ar estraga tudo rapidamente e fica impossível manter qualquer coisa seca. Estou aqui para coordenar uma campanha de vacinação. A área de Basankuso é onde iremos realizar a campanha. Existem cerca de 245 vilarejos dentro da floresta, acessíveis por motocicleta. E 251 pequenos vilarejos na margem do rio, além de 41 outros vilarejos de extrema dificuldade de acesso escondidos bem no meio da floresta. Ao todo são 540 vilarejos, embora suspeitemos que existam muito mais na margem dos rios. Todos esses vilarejos têm que ser visitados, mesmo que haja apenas uma única criança. O objetivo da campanha é vacinarmos 100% o público alvo.

Mas antes de darmos início, temos que planejar; identificar os vilarejos, as rotas, os profissionais e tudo mais. Portanto, iniciaremos com uma série de missões exploratórias, visitando os postos de saúde para prepararmos o campo para a campanha de vacinação.

Saímos de Mbandaka num pequeno avião Cessna de MSF. Antes de partirmos, fui ao escritório de MSF para pegar o kit de sobrevivência e os equipamentos necessários para o acampamento. Não gosto muito de voar, mas pela janela da frente pude ter uma boa visão do terreno onde iria trabalhar pelos próximos meses. Como o piloto disse: “parece uma enorme massa verde de brócolis”.

Dentro da mata

Eram cinco motocicletas para oito pessoas. Com mais a bagagem, o jeito era sentar espremido entre as bolsas e o motorista. De fato, fica bastante difícil fazer qualquer movimento. Alguns dos rios que atravessamos eram tão profundos que tínhamos que usar uma canoa. Machuquei o meu joelho de tanto esbarrá-lo nos galhos de árvore e na vegetação. No final, tive que parar e fazer uma proteção por cima da minha calça, com grandes folhas de árvore. Até que funcionou bem.

Mais tarde fui mordida na cabeça por um inseto enorme, possivelmente uma aranha, que entrou por dentro do meu capacete. Inchou um pouco e doeu por um tempo, mas ficou bom.

Encontrando os postos de saúde

“Durante a jornada, paramos em diferentes postos de saúde e conversamos com os profissionais para descobrirmos mais sobre a população, completarmos o número de vilarejos que não estavam no mapa que carregamos e perguntarmos sobre distâncias. Também tínhamos que tentar identificar possíveis pessoas dos vilarejos que pudessem nos ajudar na campanha de vacinação. Pessoas com conhecimento de saúde, ou pessoas que simplesmente pudessem ler e escrever. A RDC é uma zona de conflito com muitos deslocados, portanto muitos não tiveram a oportunidade de aprender.

Como houve um pequeno surto de sarampo recentemente em Basankuso, perguntamos em cada posto de saúde quantos casos haviam sido registrados naquela área. As informações eram quase sempre uma estimativa e muitas das crianças afetadas pela doença já tinham sido vacinadas antes. Isso não era um bom sinal, já que indicava que a vacinação prévia não tinha sido bem feita. Outro fator poderia ser que as mães das crianças doentes não soubessem dizer se seus filhos tinham mesmo sido vacinados contra o sarampo ou não. Por isso, MSF sempre tenta dar diferentes vacinas em diferentes partes do corpo. Uma marca no bumbum significa sarampo, no braço, poliomielite.

Uma cama para a noite

Quando terminávamos, a noite era sempre muito escura e ainda tínhamos que encontrar algum lugar para dormir. Dormimos onde podíamos. Em consultórios, tendas, e nas cabanas dos moradores locais. Você fica imunda depois de um dia inteiro em cima de uma motocicleta. Minha camiseta branca de MSF estava sempre marrom e meu corpo coberto de poeira. Num lugar onde dormimos, nos deram um balde com água fria e encontrei um canto para o meu banho. Era um pouco exposto, mas era também legal estar ao ar livre debaixo da luz da lua.

Quando os cinco dias terminaram, tínhamos visitado todos os postos de saúde e tínhamos uma idéia melhor do desafio a nossa frente. Alguns vilarejos só eram acessíveis depois de um dia todo na canoa. Ninguém sabia ao certo quantas pessoas vivem nos diferentes vilarejos. Isto pode vir a ser uma meta bastante difícil de se alcançar, ainda mais tendo que manter as vacinas resfriadas entre 2 e 8 graus centígrados.

Primeira missão cumprida

De volta à cidade de Basankuso tínhamos que organizar as informações recolhidas durante os cinco dias.

Karl, um profissional de logística da campanha, e eu precisávamos ir a Mbandaka receber todas as coisas que haviam chegado de Lukuto. Dois dias de trabalho. Sem contar que teríamos que carregar as canoas com o material recebido (refrigeradores, caixas de isopor, geradores, gasolina). Tínhamos acabado de ouvir que uma canoa indo de Mbandaka para Basankuso e Djolo tinha virado e todas as coisas tinham afundado. Nosso plano era dar início à campanha de vacinação em duas ou três semanas.

Nosso caminho de volta ao escritório de MSF em Mbandaka levou um dia inteiro debaixo de um sol impiedoso, navegando por um dos afluentes do rio Congo. Tínhamos acordado tão cedo que mal pudemos tomar café da manhã, antes de partir. Mas eu tinha trazido comigo uma dúzia de bananas e planejava comprar pão no mercado antes de sairmos. No final das contas, nem tivemos tempo de comprar os pães, e esqueci as bananas na mesa da cozinha.

Depois de buscar alguma coisa comestível na minha sacola (13 horas de viagem era muito tempo sem comida) encontrei chicletes. Um para cada, no café da manhã, os outros seriam guardados para o almoço e o jantar. Por sorte, fizemos uma parada de 10 minutos numa missão católica no meio da floresta. Tempo para irmos ao banheiro, já que a floresta era tão fechada que sequer podíamos adentrá-la. Conseguimos comprar algumas bananas e pães na missão e finalmente comemos alguma coisa.

Algumas pessoas na canoa estavam carregando animais para Mbandaka. Quando entramos na canoa havia cinco galinhas e um porco. Uma das galinhas acabou caindo no rio. Achei que fôssemos virar já que os pés dela estavam amarrados e ela não parava de se debater. Eu quase me joguei no rio para salvá-la. Mas no final decidi que não por causa dos crocodilos. Avisamos as pessoas no vilarejo que havia uma galinha na água e certamente ela acabou sendo o jantar de alguma família naquela noite.

Preparando a “cadeia de frio”

Os dias seguintes foram usados para terminar o planejamento e estruturar as informações coletadas do campo. Cada equipe de vacinação será formada por cinco profissionais. Fizemos a lista de quantas equipes seriam necessárias e ainda estamos tentando decidir onde iremos armazenar as vacinas. Havia 100 mil doses para serem usadas nessa campanha, e manter as doses bem guardadas era essencial. Para isso, precisávamos criar uma “cadeia de frio”, onde as vacinas são armazenadas a baixa temperatura antes de serem usadas. Se a “cadeia de frio” se quebra, a vacinação não terá utilidade. Tudo precisa ser meticulosamente planejado.

Quando a campanha de vacinação for iniciada iremos dividir a área em três diferentes pólos. Pólo um será Waka, situada no sudeste de Basankuso. Pólo dois é Bokakata, ao sul, e pólo três Djombo, no nordeste. Decidimos começar pelo mais fácil deles, Waka. O último pólo será o mais difícil, já que teremos que transportar tudo pelo rio.

Para complicar ainda mais, dois terços da população de Djombo vivem na mata e, portanto, só podem ser acessados a pé ou de canoa. O outro um terço será acessado de motocicleta. Embora saibamos que a estrada está em péssimas condições e que será terrivelmente difícil atravessá-la carregando as caixas refrigeradas e bastante pesadas na garupa das motocicletas, esperamos que tudo dê certo.

No próximo mês, você poderá ler a continuação da história da campanha de vacinação coordenada pela enfermeira Jessica Nestrell.

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