O sarampo é uma ameaça fatal para as crianças desnutridas em Helmand e Herat

À falta de recursos médicos, junta-se a desnutrição e um difícil acesso aos cuidados de saúde

© Tom Casey/MSF

Zainab não dormiu bem naquela noite. As luzes e os apitos incessantes das máquinas na unidade de cuidados intensivos tirariam o sono a qualquer pessoa. Mas o que mantia Zainab acordada não era o desassossego dos equipamentos, mas sim o seu filho, Takberullah, um bebé de um ano que também teve uma noite tormentosa, com dificuldades para respirar, até que o médico lhe deu alguns medicamentos. “Porque é que o pé do meu bebé está frio?”, pergunta Zainab a um médico, enquanto cobre o peito do filho com um cobertor e lhe agarra o tornozelo.

Takberullah passou os últimos três dias na unidade pediátrica de cuidados intensivos do hospital de Boost, onde a Médicos Sem Fronteiras (MSF) presta apoio, na cidade afegã de Lashkar Gah, que fica na província de Helmand. O bebé adoeceu juntamente com as irmãs dez dias antes, quando começaram a ter febre e diarreia, mas a doença foi mais severa para Takberullah. Dois dias depois, desenvolveu uma erupção cutânea e a mãe levou-o ao hospital de Boost, onde lhe foi diagnosticado sarampo.

Enfrenta agora uma grave pneumonia, que é uma infeção respiratória com risco de vida, e hipoglicémia, pois tem os níveis de glicose baixos. Estas patologias explicam que esteja com os pés e as mãos frias, e deixam-no num estado crítico. “Quanto tempo mais é que ele vai ter de ficar aqui?”, questiona Zainab. “Eu tenho mais crianças doentes em casa, mas não sei como é que estão”, aponta.

Para debelar a doença, o bebé está a receber oxigénio, antibióticos e glicose. Takberullah é uma das mais de 1 400 crianças com sarampo que a MSF assistiu nos projetos em Helmand e Herat em fevereiro passado. Metade delas desenvolveram complicações que requereram internamento no hospital.

Sem camas suficientes

O número de casos de sarampo no hospital de Boost tem sido extremamente alto. Em média, desde dezembro até ao final de fevereiro passado mais de 150 crianças por semana passaram por este hospital. Quarenta por cento destas desenvolve patologias graves, como pneumonia, e são admitidas para assistência hospitalar.

Em Herat, a MSF registou quase 800 casos de sarampo em fevereiro. No início do ano de 2022, o projeto tinha oito camas de isolamento para pacientes com doenças infecciosas, como sarampo ou tuberculose. Em pouco tempo, esta ala ficou sobrecarregada de pacientes com sarampo e tiveram de ser acrescentadas mais 12 camas. Está também a ser reabilitado um edifício para o transformar numa unidade com 60 camas dedicada a providenciar cuidados intensivos a pacientes em estado crítico e tratamento em regime de internamento para quem recupera da doença. Contudo, é provável que isto não seja suficiente.

“Sessenta por cento dos casos de sarampo que chegam ao Hospital Regional de Herat necessitam de hospitalização e metade dos pacientes que admitimos em cuidados intensivos estão desnutridos”, explica a coordenadora do projeto da MSF em Herat, Sarah Vuylsteke.

Desnutrição e sarampo, uma combinação fatal

A situação é especialmente alarmante, com o Afeganistão a enfrentar já uma crise nutricional. Nos centros de nutrição da MSF em Helmand e Herat, as crianças têm muitas vezes de partilhar camas, uma vez que o número de pacientes é superior ao número de camas disponíveis, desde há alguns meses. Entre janeiro e o fim de fevereiro, nos dois projetos foram admitidas 800 crianças com desnutrição aguda grave.

“A maioria das crianças que vemos no nosso centro de alimentação e na unidade de cuidados intensivos teve sarampo recentemente”, conta o líder da equipa clínica da MSF no hospital de Boost, Fazal Hai Ziarmal. “O sarampo afeta o sistema imunitário das crianças e compromete a proteção contra doenças respiratórias, como a pneumonia”, acrescenta.

“Se uma criança está desnutrida, como estão muitas no Afeganistão agora, o seu sistema imunitário fica muito comprometido, o que pode provocar uma infeção de sarampo mais grave e prolongada. Isto deteriora ainda mais o sistema imunitário e deixa as crianças bastante vulneráveis. Muitas crianças desnutridas e que tiveram sarampo morrem devido a sequelas da doença”, sublinha Fazal Hai Ziarmal.

Difícil acesso a cuidados médicos

Uma das formas de prevenir o sarampo é através da vacinação, mas a cobertura vacinal no Afeganistão é baixa, o que pode ajudar a explicar o aumento vertiginoso de casos. Além disso, há muitas famílias que vivem numa mesma casa, o que propicia a disseminação rápida da doença. Algumas crianças recuperam sozinhas, mas outras necessitam de medicação simples para serem tratadas, o que pode ser difícil, num país onde imensas unidades de saúde não têm medicamentos ou provisões suficientes. Por isso, muitas famílias têm de recorrer às farmácias locais para comprar os medicamentos para os filhos.

“Os meus 12 netos adoeceram todos, mas estes três são os que estão a sofrer mais”, explica Han Bibi, que está à espera do filho na unidade de rastreio de sarampo no hospital de Boost, com os netos a acompanhá-la. As três crianças parecem confusas e infelizes: todas têm sarampo.

“Comprámos alguns medicamentos na nossa comunidade, mas quando vimos que as crianças não estavam a melhorar, viemos para aqui. A mais velha chorava, porque lhe doía o peito, e também vomitava. Ela bebe muita água, mas não consegue aguentar mais nada no estômago”, conta Han Bibi.

Uma pressão extra para o sistema de saúde

“No nosso projeto em Herat, duas crianças morrem todos os dias devido a complicações associadas ao sarampo, e temo que a situação seja muito pior noutras partes do país, onde não há acesso a cuidados mais avançados”, diz a coordenadora da MSF em Herat, Sarah Vuylsteke.

“As estruturas de saúde pública que visitámos em áreas rurais têm capacidade para ajudar pacientes com complicações ligeiras, mas todas as equipas nestes centros nos disseram que não conseguem tratar casos mais graves da doença, porque não têm equipas, material nem equipamento. Pelas crianças que estão muito doentes, as mais vulneráveis, há muito pouco que consigam fazer”, garante.

“Podemos aumentar o número de camas nos sítios onde a MSF trabalha, mas isso não resolveria o problema. A não ser que haja uma campanha de vacinação maciça, vamos continuar a ver os casos a aumentar durante os próximos seis meses, o que colocará ainda mais pressão no sistema de saúde, que já é naturalmente frágil. A longo prazo, o programa de vacinação de rotina tem de ser reforçado, para que as crianças possam ser vacinadas regularmente, em vez de o serem apenas quando há picos de casos da doença”, sugere Sarah Vuylsteke.

A MSF também financiou equipas e equipamentos para uma nova ala de 35 camas no Hospital Regional de Kunduz. Esta ala hospitalar abriu a 27 de fevereiro e, na manhã seguinte, já tinha mais pacientes do que camas.

De regresso à unidade pediátrica de cuidados intensivos do hospital de Boost, médicos reúnem-se à volta daquela que foi a cama de Takberullah, para tentar salvar a vida de um novo paciente. Entretanto, Zainab arrumou já as suas coisas e volta para casa, sozinha, para estar com os filhos que lhe restam.

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