Os palestinianos vivem em medo constante com aumento da violência em Hebron

A MSF tem expandido a resposta de forma a providenciar serviços de saúde a pessoas que não conseguem chegar às estruturas médicas devido às restrições e à violência

© Laora Vigourt/MSF, 2024

“Há anos que as coisas são más aqui. Os soldados israelitas fazem buscas nas nossas casas dia e noite, vandalizam e detêm pessoas sem aviso nenhum”, conta Alma*, uma habitante de Hebron, a maior cidade palestiniana da Cisjordânia, nos Territórios Palestinianos Ocupados.

Alma descreve a situação desde o eclodir da guerra Israel-Gaza, a 7 de outubro passado. O apartamento onde vivia em Hebron foi destruído por soldados israelitas uns dias antes de contar a sua história às equipas da Médicos Sem Fronteiras (MSF). “Tudo piorou muitíssimo desde 7 de outubro, não há piedade. As pessoas na minha comunidade têm sido muito afetadas e vivem em medo constante”, explica.

Aumento da violência e intimidação por colonos e soldados israelitas

Hebron ilustra com nitidez o sofrimento dos palestinianos sob ocupação: é um ambiente generalizado de intimidação e de coerção. A realidade quotidiana da vida das pessoas é feita de restrições à movimentação, despejos e deslocações forçadas, demolições de casas, operações de buscas e detenções, interrupção das aulas e a presença contínua dos militares e colonos israelitas.

A escalada recente da guerra Israel-Gaza agravou ainda mais a violência e as restrições impostas aos palestinianos que vivem na Cisjordânia. O Gabinete para a Coordenação de Assuntos Humanitários das Nações Unidas (OCHA, na sigla em inglês) registou que, até 2 de janeiro, pelo menos 198 famílias palestinianas, englobando 1 208 pessoas, em que se incluem 586 crianças, foram deslocadas devido à violência exercida por colonos e às restrições de acesso na Cisjordânia desde 7 de outubro. Estas pessoas representam 78 por cento do total de deslocados registados na Cisjordânia por causa da violência dos colonos e restrições de acesso desde o início do ano de 2023.

“Logo após 7 de outubro, já se via como as coisas tomaram um rumo mais sombrio. O acesso das pessoas a serviços essenciais, incluindo lojas e cuidados de saúde, foi fortemente restringido”, frisa a coordenadora de projeto da MSF em Hebron, Simona Onidi. “A prestação de cuidados de saúde também foi afetada. Devido às fortes restrições à movimentação e aos riscos de violência tanto para os pacientes como para o pessoal médico, observámos uma redução em 78 por cento nas consultas médicas realizadas pela nossa equipa em outubro de 2023, comparando com o mês anterior”, precisa ainda.

Na Cidade Velha de Hebron, localizada na zona controlada por Israel que é conhecida como H2, as limitações às entradas e saídas são extremamente restritivas e imprevisíveis, com impactos em todos os aspectos na vida dos palestinianos que ali vivem. Já há muito tempo que H2 é uma das áreas mais restritas na Cisjordânia, com 21 postos de controlo permanentes operados pelas forças israelitas, que regulam as movimentações dos residentes palestinianos e colocam barreiras significativas aos profissionais de saúde que tentam aceder à área.

Nas primeiras semanas da guerra Israel-Gaza, as forças israelitas restringiram ainda mais as movimentações, abrindo os postos de controlo durante apenas uma hora de manhã e uma hora à tarde, e só em alguns dias na semana. Em alguns períodos, os palestinianos não estão autorizados a sair de casa ao longo de quatro dias consecutivos, nem sequer para deitar fora o lixo ou mesmo abrir as janelas.

“Não consigo comparar a intensidade que vivemos hoje com antes [da guerra]. É como se os colonos e o Exército israelitas não tivessem limites”, avança Aliyah*, uma mulher palestiniana de Tel Rumeida, na H2. “Estou grávida e, por exemplo, esta manhã os soldados quiseram que eu passasse pela máquina de raios X três vezes [no posto de controlo]. Pedi-lhes para não passar, pela segurança do meu bebé, mas eles não quiseram ouvir – como se nem sequer acreditassem que estou grávida”, conta.

Outra habitante da área H2 em Hebron, Salma*, explica que os palestinianos estão “todos aterrorizados”. “As pessoas pensam que o que está a acontecer em Gaza vai acontecer na Cisjordânia. Vamos ser os próximos? Só não sabemos quando.”

Restrições às movimentações comprometem os cuidados de saúde

Uma vez que a interrupção no acesso a cuidados médicos se agravou nos últimos dois meses, devido às restrições às movimentações e à violência, as equipas da MSF têm expandido gradualmente a resposta prestada de forma a providenciar serviços de saúde a pessoas que não conseguem chegar às estruturas médicas.

As clínicas móveis da organização médica-humanitária adicionaram, até novembro passado, seis localizações às atividades desenvolvidas, com o propósito de chegar a dez áreas, cobrindo o exterior e interior da Cidade Velha de Hebron e também aldeias remotas como Masafer Yatta, no Sul da Cisjordânia. Nestas clínicas são disponibilizadas consultas de medicina geral, serviços de saúde reprodutiva e apoio em saúde mental. Em novembro e dezembro de 2023, as equipas da MSF prestaram 1 900 consultas no conjunto destes locais.

“Aceder a estruturas médicas tornou-se ainda mais perigoso para as pessoas dado o aumento de postos de controlo e os recolher obrigatórios”, sublinha o responsável médico da MSF no projeto em Hebron, Juan Pablo Nahuel Sanchez. “E, ao mesmo tempo, a prestação de serviços médicos também se tornou num maior desafio para as organizações médicas porque as restrições às movimentações afetam a capacidade dos trabalhadores de saúde chegarem às estruturas médicas. Consequentemente, a prestação de serviços de saúde tem sido interrompida.”

Na área H2 de Hebron existe só uma estrutura médica gerida pelo Ministério da Saúde palestiniano que se dedica ao atendimento de pacientes com doenças agudas e crónicas, mas, desde 7 de outubro, os trabalhadores do Ministério da Saúde não têm sido autorizados a aceder à área, deixando as pessoas sem cuidados médicos. Para os pacientes com doenças crónicas, em especial, a falta de acompanhamento para garantir a continuidade dos cuidados é uma enorme preocupação. Atualmente, nenhuma outra organização além da MSF pode ter atividades nesta área.

“Nenhuns carros, nem mesmo ambulâncias, são permitidos dentro de H2. E se uma pessoa estiver grávida e entrar em trabalho de parto?”, questiona Nadia*, que reside nesta área de Hebron. “Terá de andar até ao topo da colina, onde estão os postos de controlo, e rezar para que os soldados deixem passar facilmente. Não é por se tratar de um [assunto] médico que, de repente, se tem direitos”, frisa.

Fora da cidade de Hebron, no deserto montanhoso e remoto de Masafer Yatta, onde as pessoas têm estado sob extraordinária pressão por parte das autoridades e colonos israelitas para que partam daquela zona, os despejos, demolições de casas e restrições às movimentações estão igualmente a intensificar-se desde a recente escalada e impedem drasticamente o acesso das pessoas a cuidados de saúde.

“Temos pacientes que não viam um médico há semanas ou meses. O que é mais comum são infeções respiratórias e doenças crónicas. Os medicamentos são caros e, sem seguros de saúde, os pacientes não têm como os pagar”, nota ainda o responsável médico da MSF no projeto em Hebron.

Paralelamente, continuam a ser providenciados serviços de saúde mental, incluindo primeiros-socorros psicológicos, aconselhamento e psicoterapia, às pessoas afetadas pela situação. Os psicólogos da MSF estão a observar uma clara deterioração na saúde mental da população.

“O que é impressionante aqui é que estamos a tratar não apenas transtornos de stress pós-traumático, mas também trauma contínuo. As pessoas estão a enfrentar uma exposição contínua a eventos traumáticos diariamente, tornando difícil obter alívio”, descreve um psicólogo da MSF.

A deterioração da saúde mental das pessoas afeta não só quem consegue compreender a extensão e o impacto da violência causada pela ocupação. Até bebés e crianças pequenas estão a exibir sintomas de ansiedade como enurese noturna (perda involuntária de urina durante o sono), pesadelos e isolamento.

“Parte-me o coração criar as crianças neste ambiente”, lamenta Aliyah. “Sabe o que a minha filha me disse noutro dia? ‘Mãe, tenho tanto medo’ – e ela só tem 2 anos.”

* os nomes das pessoas entrevistadas foram alterados e outros factos que poderiam levar a serem identificadas foram removidos, por razões de segurança

 

A MSF trabalha na Cisjordânia desde 1988, desenvolvendo atividades atualmente em Hebron, Nablus e Jenin. As equipas da organização médica-humanitária levam a cabo programas com atividades de sensibilização e divulgação, prestam serviços médicos e cuidados básicos de saúde através de clínicas móveis, assim como atividades de capacitação, disponibilizando formação em estruturas de saúde e hospitais sobre planos de vítimas em grande escala, resposta a emergências e triagem de pacientes.

Além da expansão das atividades médicas feita desde 7 de outubro, as equipas da MSF aumentaram as atividades de promoção de saúde nas comunidades, e a distribuição de artigos de ajuda humanitária, kits de higiene e alimentos a pessoas de Gaza que estão deslocadas internamente e a habitantes da Cisjordânia afetados pela violência e pelas deslocações forçadas.

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