Pacientes descrevem massacres de civis em Binza, no Kivu Norte

Cirurgiões do Hospital Geral de Referência de Rutshuru, na RDCongo, cauterizam o ferimento de uma jovem vítima de tiro.
© Sam Bradpiece/MSF

A localidade de Binza, na República Democrática do Congo (RDC), tem sido assolada por uma vaga de violência extrema desde julho de 2025. Muitos pacientes atendidos pela Médicos Sem Fronteiras (MSF) testemunharam a ocorrência de massacres – incluindo de mulheres e crianças. Todos identificam homens armados como os autores dos ataques e alguns referiram o grupo armado M23. Embora os massacres em grande escala pareçam ter diminuído, as pessoas nesta região continuam a sofrer diariamente com a violência cometida pelos grupos armados.

Espérance* estava a trabalhar no campo quando chegaram indivíduos armados e envergando uniformes. “Onde encontravam homens, matavam-nos sistematicamente e decapitavam-nos [com catanas]”, contou. “Vimos oito homens mortos.”

As mulheres e crianças foram reunidas e levadas até junto de um rio próximo. Conforme os disparos soaram, corpos sem vida começaram a cair à água. Espérance atirou-se ao rio com o bebé às costas, na tentativa de salvar a vida de ambos. Quando chegou à outra margem, percebeu que o filho tinha sido atingido a tiro na cabeça. “Desatei o xaile e deixei o corpo dele deslizar para o rio”, recorda.

Após cessarem os disparos, Espérance voltou ao local do massacre, onde encontrou os outros dois filhos assassinados. Os gritos de desespero dela foram ouvidos por um dos homens armados, que a violou e depois a  abandonou.

 

Relatos de massacres

Desde julho que várias organizações e meios de comunicação social têm publicado relatos sobre massacres no território de Rutshuru, na província de Kivu Norte.

Pacientes oriundos de Binza e recebidos pelas equipas da MSF no hospital de Rutshuru também descreveram massacres e execuções sumárias de civis que trabalhavam nos campos a leste do Parque Nacional de Virunga, ocorridas em julho passado. Testemunhas contaram ter visto corpos de pessoas alvejadas a tiro perto da aldeia de Kiseguru. Todos os sobreviventes referem homens armados como os responsáveis destes assassinatos em larga escala; alguns identificaram o grupo M23.

 

O médico Karry Felix, cirurgião da MSF, examina a lista de cirurgias do dia e está a escrever “feridas por disparos” no quadro branco.
O médico Karry Felix, cirurgião da MSF, examina a lista de cirurgias do dia e está a escrever “feridas por disparos” no quadro branco. © Sam Bradpiece/MSF

 

Embora a MSF não consiga verificar o número exato de mortos, 124 vítimas com ferimentos intencionais foram tratadas no Hospital Geral entre julho e agosto, a maioria proveniente das zonas de saúde de Binza e de Bambo.

“Tratámos múltiplos pacientes, incluindo mulheres e crianças, que tinham sido feridos a tiro durante aquilo que descrevem como um massacre de civis, em julho”, sublinha o responsável pelos projetos da MSF na RDC, Christopher Mambula. “Algumas destas pessoas sofrem de stress pós-traumático. Grupos armados em todo o território de Rutshuru continuam a matar civis, numa flagrante e inaceitável violação do direito humanitário internacional.”

 

Resposta da MSF à vaga de violência

O Hospital Geral de Rutshuru, onde a MSF presta apoio com cuidados cirúrgicos e outros serviços médicos, recebeu em média 59 vítimas de violência por mês entre janeiro e agosto – um aumento de 15 por cento em relação ao mesmo período no ano passado, e o número mais alto desde que a organização médica-humanitária começou a recolher estes dados na região em 2019.

A maioria das pessoas feridas a tiro que foram tratadas pelas equipas da MSF em Rutshuru são civis (83 por cento de todos os pacientes em julho e agosto de 2025).

Apesar de os massacres em larga escala terem aparentemente diminuído, as pessoas continuam a enfrentar violência às mãos de grupos armados, sendo registados relatos de abusos cometidos diariamente também por grupos como o CMC, Wazalendo ou FDLR.

“Continuamos a receber todos os dias muitos feridos por disparos”, frisa o cirurgião Karry Félix, que integra as equipas da MSF no Hospital Geral de Rutshuru. “Por vezes são pessoas apanhadas no fogo cruzado de confrontos. Por vezes são combatentes.”

Marie* perdeu o pai e três irmãos em agosto, quando trabalhavam nos campos agrícolas de Binza.

 

Estamos com medo. Não há paz aqui. Pode ser-se morto por nada.”

 

Além de providenciar cuidados aos feridos, as equipas da MSF viram-se obrigadas a reduzir a resposta ao surto de cólera na região, devido a restrições impostas pelo AFC/M23. Apesar de a MSF manter um centro de tratamento de cólera em Kiseguru, as limitações no acesso ajudam a explicar a baixa no número de pacientes atendidos para cerca de dez por dia no final de agosto.

 

Uma crise alimentar iminente

Binza situa-se numa área de terras férteis, onde muitas famílias tentam obter sustento na agricultura, nos campos a leste do Parque Nacional de Virunga, um território onde operam os grupos armados Wazalendo e FDLR. O M23 tem conduzido operações militares contra esses grupos nos últimos meses.

Estes confrontos deixaram os campos cobertos de corpos em decomposição, segundo contam as comunidades locais, além de provocarem deslocações maciças e impedirem os agricultores de fazer a colheita ou de preparar a terra para a próxima época de plantio, agravando assim os riscos de uma crise de desnutrição.

Judith* foi atingida a tiro numa perna enquanto colhia milho, em julho. “Éramos muitos. Outros morreram ali mesmo e não há ninguém para os enterrar”, conta.

 

Não posso voltar ao campo, pois tenho medo de ser morta. Eles matam quem ousa procurar comida ali.”

 

Fotografia de Judith (nome alterado para proteção de identidade). Ela foi atingida a tiro numa perna enquanto colhia milho, em julho.
Judith* foi baleada enquanto trabalhava num milharal. Conseguiu escapar, mas nem todos tiveram a mesma sorte. © Sam Bradpiece/MSF

 

No mês seguinte, Justine* soube que o marido tinha sido morto quando andava à procura de bananas-pão. Ela tinha dado à luz pouco antes de receber essa notícia. “Agora tenho de cuidar dos meus filhos”, desabafa.

 

Há uma ameaça constante de morte e violação. A falta de comida vai matar as pessoas aqui. Ninguém está a trabalhar a terra.”

 

A MSF providenciou tratamento em mais de 400 casos de desnutrição grave em crianças com menos de 5 anos em todo o território, só nos meses de julho e agosto. As deslocações maciças forçadas pela insegurança vão provavelmente agravar ainda mais este problema.

 

*nomes alterados para proteção de identidade

 

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