Quebrando as correntes da doença mental na Libéria

MSF tem fortalecido sua atuação para melhorar a vida de pessoas com distúrbios mentais

Quebrando as correntes da doença mental na Libéria

“Quando voltei, ele disse: ‘Eu tirei a corrente. Você não deveria me amarrar’. Eu disse: ‘Bem, eu não quero que você vá de um lado para o outro. É por isso que te amarro. Não está no meu coração te amarrar. Eu tinha visto Timothy se movendo de maneira triste e vergonhosa. Então, eu comprei outra corrente”.

Susana Foley, mãe de Timothy TT, paciente de saúde mental de MSF em Monróvia, Libéria

 

Timothy TT* é um homem de 32 anos que mora com sua mãe, irmão e irmãs em uma comunidade de casas de blocos de concreto nos arredores da agitada Monróvia, a capital da Libéria. Cada casa é cercada por palmeiras, arbustos e pequenos gramados com varais de roupa. A privacidade doméstica é perfurada pelas trilhas de terra que seguem de uma casa a outra. Todo mundo sabe da vida de todos. Mas às vezes isso é bom.

Quando a mãe de Timothy, Susana Foley, fala sobre ele, é com profundo carinho e ternura.  Eles passaram pelo inferno juntos. E por causa de sua dedicação, junto com a ajuda de Médicos sem Fronteiras (MSF) e do Ministério da Saúde da Libéria, sua situação melhorou.

“Enquanto Timothy crescia, não vi nada de ruim”, diz Susana. “Ele ia à escola… Ele costumava jogar futebol. E através do futebol deram a ele uma bolsa de estudos”.

Timothy se formou no ensino médio e conseguiu um emprego em uma empresa de água engarrafada. Durante vários anos, ele estava indo muito bem, vivendo sozinho, vendo sua família com frequência e indo atrás de seus interesses em viagens e estudos – ele pediu um visto para ir à universidade no exterior. Quando sua esquizofrenia surgiu, foi chocante, como se ele tivesse se tornado uma pessoa completamente diferente da noite para o dia.

Susana se lembra vividamente do dia em outubro de 2014, quando tudo mudou. Eles estavam se preparando para ir à igreja e Timothy parecia estressado e desorientado. Então, ele pegou sua Bíblia e correu para fora da casa como se alguém o estivesse perseguindo. Mais tarde naquele dia, na igreja, ele perguntou à sua mãe se ela conhecia Deus. Então, ele segurou uma cadeira sobre a cabeça e começou a falar, segundo ela, “como um monstro”.

Não foi só na igreja que o comportamento de Timothy gerou medo e perturbação. Na comunidade ele agiu de forma agressiva, entrando em brigas e bebendo demais. Em casa, aterrorizou seus irmãos. Este não era o jovem responsável e inteligente que sua família conhecia há quase 30 anos; ele havia se tornado uma pessoa irracional e perigosa. Susana o levou para todas as igrejas da região. De seu ponto de vista, ele tinha sido possuído por demônios, mas nenhum pregador ou curador foi capaz de curá-lo. Ela estava preocupada com a segurança dele quando ele não estava com ela – se ele irritasse a pessoa errada, poderia se machucar seriamente, ou pior.

Finalmente, ela fez a última coisa que gostaria de fazer, mas a única que sabia que o manteria seguro.

“Eu fui e comprei uma corrente“, disse ela. “Eu coloquei uma corrente nele.” Ficou presa ao tornozelo de Timothy e corria em direção a um bloco de concreto na parede do seu quarto. Ele podia se mover pelo quarto pequeno, que ficava bem ao lado da área comum da casa, mas não podia atacar seu irmão, não podia intimidar fisicamente sua mãe. E ele não podia sair.

Timothy conseguiu escapar algumas vezes. Ela diz que ele encontrou a chave, ele diz que quebrou a corrente. De qualquer maneira, a corrente foi rapidamente substituída e a família sofreu com isso.
 

Fortalecimento do sistema de saúde mental da Libéria

Weedor G. Forkpa é uma jovem que irradia competência. Como profissional de saúde mental empregada pelo governo na clínica de cuidados primários na comunidade de Bromley, perto de onde Timothy mora, sua mesa contém pilhas de pastas arrumadas e uma caneta roxa que ela usa e suspende enquanto analisa o arquivo de Timothy.

“Recebemos uma queixa em outubro passado através dos agentes comunitários de saúde que visitaram a comunidade onde Timothy mora”, diz ela, examinando o arquivo. “Fomos a casa dele e vimos Timothy – ele estava acorrentado. E nos encontramos com a família.

Weedor e seu colega avaliaram a condição de Timothy. “Dissemos à família que há tratamento disponível, que é gratuito, e que Timothy precisava começar imediatamente”.

Apenas um ano atrás, antes de MSF começar a apoiar o sistema de saúde mental da Libéria, o medicamento haloperidol provavelmente não estaria disponível, e Weedor poderia nunca ter ouvido falar do caso de Timothy.

Apenas nos últimos 30 anos, a Libéria passou por duas guerras civis e um surto catastrófico de Ebola. Como todos os aspectos da vida no país, o sistema de saúde foi tremendamente impactado por esses eventos cataclísmicos. Muitos profissionais médicos deixaram o país – ou morreram durante o surto de Ebola –, as instituições têm recursos escassos e o conhecimento e a busca por saúde para muitas pessoas é algo limitado.

MSF desempenhou um papel fundamental no combate ao surto de Ebola que atingiu a Guiné, Serra Leoa e a Libéria de 2014 a 2016. A organização fechou seus últimos projetos relacionados ao Ebola na Libéria – clínicas de sobreviventes que ofereciam cuidados para pessoas que continuaram a ter problemas físicos e psicossociais depois de se recuperarem da doença – em 2016.

Quando a equipe de saúde mental começou a procurar serviços para encaminhar os pacientes restantes, descobriu que havia apenas um psiquiatra em serviço e uma clínica psiquiátrica – que prestava apenas cuidados mínimos – em todo o país. Isso foi o que levou MSF a conduzir uma avaliação das necessidades de saúde mental na Libéria e, em última análise, estabelecer parcerias com o Ministério da Saúde para melhorar e ampliar seus serviços.

Com um sistema nacional de saúde mental mínimo, faz sentido que muitas pessoas na Libéria não soubessem sobre doença mental, ou que ela pode ser tratada. Embora o caso de Timothy seja um exemplo extremo, ele não é a única pessoa com problemas de saúde mental a ser contida por correntes na Libéria. E a prática do encadeamento certamente não é exclusiva desse país. Especialistas em saúde mental de MSF dizem que isso acontece em quase todos os lugares onde há falta de recursos para a saúde mental. Em todo o mundo, as pessoas são acorrentadas em casas, pátios, instituições religiosas e de saúde. A prática não era incomum em manicômios em muitos lugares do mundo antes que medicamentos anti-psicóticos fossem desenvolvidos em meados do século XX.

Embora as pessoas na posição de Susana muitas vezes não tenham opções melhores, acorrentar não é uma solução humana para a doença mental – impõe uma perda de dignidade e liberdade, sem mencionar o perigo físico. Assim, quando as equipes de MSF descobrem que alguém está acorrentado, elas trabalham com a família ou com o cuidador para fornecer tratamento e tirar o paciente com segurança dessas restrições severas.

Equipes de MSF viram que investir em cuidados comunitários como o modelo introduzido na Libéria pode fazer uma enorme diferença na vida de pessoas que sofrem de doenças como transtorno bipolar, depressão severa, transtorno de estresse pós-traumático e, como no caso de Timothy, esquizofrenia.

 

“Eu acredito que este homem está bem”

MSF começou a trabalhar com o Ministério da Saúde em 2016 em um ambicioso plano de cinco anos para criar e oferecer à população serviços de saúde mental que nunca haviam sido oferecidos antes. O projeto visa integrar os cuidados de saúde mental nas unidades básicas de saúde, com MSF fornecendo três pilares principais de apoio: acesso a medicamentos, que tem sido um desafio constante no país; fornecimento de treinamento para médicos como Weedor por profissionais contratados por MSF; e desenvolvimento de atividades de sensibilização da comunidade.

O aspecto comunitário do plano é tão crucial quanto os outros. A equipe psicossocial treinada por MSF trabalha com agentes comunitários de saúde do governo – eles vão até as áreas em torno de cada uma das quatro clínicas de atenção primária que também oferecem serviços de saúde mental e seu trabalho tem três frentes: eles identificam novos pacientes e encaminham para a clínica mais próxima; acompanham pacientes; e conscientizam e combatem o estigma em torno das doenças mentais nas escolas, igrejas e outros espaços públicos.

Mietta Cooper é a agente comunitária que descobriu o caso de Timothy. Quando ela visitou a área dele, os líderes da comunidade lhe disseram que ele tinha o tipo de comportamento que ela descreveu para eles como doença mental e que ele estava em casa acorrentado. Ela perguntou se poderia encontrá-lo, então a levaram para a casa de Susana e a apresentaram à família. “Não conseguimos chegar a Timothy porque ele era violento naquela época”, diz ela. “Então, conversamos com a mãe dele e contamos a ela sobre o tratamento. Ela nos disse que Timothy não podia ir ao hospital porque é violento. Então, voltamos ao centro de saúde e contamos a profissional clínica de saúde mental sobre ele ”.

Weedor e outro clínico chegaram à casa de Timothy e avaliaram sua condição. Os sintomas da psicose ficaram imediatamente claros, diz ela. Posteriormente, ele seria diagnosticado com esquizofrenia, mas, naquele dia, Weedor iniciou tratamento em casa com Timothy e sua família. No início, Susana era responsável por dar ao filho os medicamentos. No terceiro dia de tratamento, ele teve sua última crise violenta. “Ele pegou uma cadeira, queria me machucar”, disse Susana. “Eu passei por trás dele, agarrei-o e as outras crianças vieram e pegaram a cadeira dele. Quando elas fizeram isso, ele se deitou. Ele nunca mais xingou; ele nunca mais lutou depois disso.”

Após duas semanas de medicação, Timothy parecia estável. “Antes do tratamento”, Weedor diz, “ele estava ouvindo vozes e, às vezes, ficava com raiva; ele queria lutar. Ele via as coisas na parede e continuava a bater nela. [As vozes] estavam dizendo que [sua família] queria machucá-lo, dizendo que sua família não o amava, que eles tinham inveja dele.” Agora, ele não ouve mais as vozes. “E, se ele as ouve, [ele disse] que não obedecerá.”

Seis meses após o início do tratamento, Timothy é responsável por sua própria medicação e ele vem à clínica em Bromley toda semana para um check-up. Ele tem um comportamento calmo e agradável e se move devagar. Além de monitorar os efeitos clínicos da medicação, Weedor conversa com Timothy. Eles conversam sobre suas ações e o dano versus benefício de suas escolhas.

Mietta continua a visitar Timothy em casa toda semana. “A primeira vez que vi Timothy”, ela diz, “você não conseguia se conectar com ele. Mas agora você e Timothy podem sentar e conversar. Eu vi sua condição mudar. Ele está melhorando. Ele está progredindo”.

Com todo o espectro de tratamento e apoio, Timothy teve progressos notáveis. “Eu consegui mudar meu comportamento”, ele diz, “o que eu digo e faço ao redor das pessoas. Eu posso estar com as pessoas.”

Susana confirma a melhora drástica de seu filho desde que ele começou a receber cuidados. Desde então, ela diz: “Ele não machuca, não xinga. Desde que vocês iniciaram o tratamento, eu acredito que esse homem está bem”.

Timothy também está ciente do papel crítico que sua família desempenhou ao ajudá-lo em sua doença. “Minha família passou a vida comigo”, diz ele, “a verdadeira vida comigo”.

 

* Sobrenome mudado para garantir a privacidade

 

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