RCA: “Pode-se chegar à pacificação no oeste do país, mas sem envolver os muçulmanos será um fiasco coletivo”

Profissional de MSF descreve situação dos muçulmanos na cidade de Carnot

Muriel Masse atuou como coordenadora de projeto em Carnot, no oeste da República Centro-Africana (RCA). A organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) trabalha no hospital da cidade de Carnot desde 2010. Muriel faz, aqui, uma retrospectiva sobre o projeto, o contexto mutante, a situação dos muçulmanos deslocados reunidos na igreja e o desenrolar dos acontecimentos nos arredores da cidade, onde o status da população deslocada continua incerto.

“As condições na cidade melhoraram significativamente desde que as forças Sangari chegaram em Carnot, no final de fevereiro. Foram conduzidas operações de desarmamento e as rotas no entorno da cidade foram asseguradas em um raio de cerca de 30 quilômetros. Isso impactou nossas atividades. O hospital recuperou o nível normal de atendimento e estamos recebendo muito menos pacientes feridos. Durante meu tempo no projeto, não observei os mesmos tipos de episódios violentos que meu antecessor, Dramane. Mantive sempre um bom relacionamento com as forças anti-Balaka em Carnot, bem como com as forças Sangaris e MISCA. Os anti-Balaka de Carnot foram ‘pacificados’. Agora organizados, eles estão trabalhando com as forças nacionais e internacionais.

No entanto, o perigo e as ameaças agora vêm de fora, dos arredores da cidade e da mata, onde a situação permanece instável e violenta. Grupos anti-Balaka que ainda não foram rendidos ou controlados ainda estão muito ativos ali. Seus objetivos estão centrados, primariamente, em lucros. Eles querem tomar o poder, obter o controle da região e das minas de diamante, além de roubar os animais dos fula. Na mata, ataques aos vilarejos continuam ativos, assim como o massacre de dezenas de pessoas.

O mesmo cenário se repete todas as vezes que a violência aumenta: as forças anti-Balaka se reúnem, atacam os fula, roubam seus animais e, algumas vezes, matam pessoas – principalmente homens. Em princípio, mulheres e crianças são poupadas. Houve tanto roubo e pilhagem de animais que o preço de uma cabeça de gado caiu de 150.000 CFA (cerca de US$130 ) para 15.000 CFA (US$31). Os fula lançaram ataques em represália visando vilarejos e a população em geral, ateando fogo em tudo. Pessoas morreram e vilarejos inteiros buscaram refúgio na mata. Os fula não deixarão suas terras e vão querer continuar sua caminhada pelo território centro-africano, ainda que precisem usar de força. É assim que o conflito está se perpetuando hoje, em grande escala, no oeste da República Centro-Africana.

As forças armadas não podem entrar na mata; apenas motocicletas adentram o território. MSF também não tem acesso às populações deslocadas que estão escondidas. É perigoso e, mais importante ainda, inacessível. Devido a essa insegurança, tivemos até que suspender nossas atividades de suporte nos centros de saúde da região de Carnot. Esperamos poder retomar esse trabalho o quanto antes. O pico anual de malária começou e ninguém sabe ao certo o que está acontecendo com essas pessoas.

Hoje, há entre 800 e 900 muçulmanos deslocados na igreja de Carnot. Todas as semanas, MSF envia duas clínicas móveis ao local. Uma agente de malária, ela mesma uma deslocada, trabalha sem parar. Ela vive ali e monitora a situação. Primeiramente, tratamos a malária e infecções respiratórias. Fico preocupada com o que vai acontecer a essas pessoas deslocadas. As pessoas mais velhas não querem sair de Carnot nem deixar suas vidas para trás e rumar para o desconhecido. Isso é completamente compreensível. Elas gostariam de voltar para suas casas, mas isso não vai acontecer. Um idoso do vilarejo me explicou que os anti-Balaka o haviam levado para a igreja. Eles disseram: ‘Ou você deixa o seu vilarejo e vem conosco ou nós o mataremos’. Não há uma escolha. Algumas pessoas estão vivendo ali, virtualmente trancafiadas, por mais de três meses. Eles têm alimentos, bebidas e acesso a cuidados de saúde, graças a MSF, mas estão cansados e envelhecendo prematuramente. Não há nada que possamos fazer. Nós ouvimos, porque eles precisam falar. Quando possível, tratamos doenças crônicas e ferimentos pequenos. Embora não estejam particularmente doentes, estão psicologicamente devastados. O que vai acontecer a esses idosos? E às crianças que ficam vagando pelos cantos, descalças e vestidas com trapos o dia todo? E quanto à mulher cujos sete de seus oito filhos, além do marido, foram mortos, e que perdeu tudo? Seus negócios e casas agora estão ocupados por outras pessoas, normalmente anti-Balaka, mas também por pessoas que fugiram de vilarejos vizinhos para buscar refúgio na cidade e se assentaram em locais de onde outros tiveram que fugir. As autoridades de Carnot podem fazer o máximo para lhes lembrar que eles não são os donos legítimos, mas os muçulmanos jamais poderão reivindicar sua propriedade. Isso é um fato. E, se tentarem, isso geraria uma nova onda de represálias e violência.

Como acontece no restante do país, os muçulmanos estão deixando a região de Carnot depois de terem sido acusados de cumplicidade com os ex-Seleka e são, agora, considerados indesejáveis. Muitos foram para Camarões e para o Chade. Aqueles que ficaram estão reunidos em locais, como a igreja de Carnot, que são protegidos por forças internacionais, como a MISCA. Eu nunca ouvi ninguém falar de reconciliação ou manifestar esperança em relação ao retorno dos muçulmanos. Eles cresceram juntos, mas, hoje, no oeste da República Centro-Africana, a população simplesmente quer voltar à ‘vida normal’.

Antes de trabalhar com MSF, estive na Costa do Marfim com outra ONG. Cheguei ali na fase pós-conflito. Tudo estava organizado para que as pessoas deslocadas voltassem para casa, acompanhadas, e a reconstrução fora planejada e estavam em andamento. Na RCA, nem os muçulmanos remanescentes nem aqueles que deixaram o país receberam nada. Não há nem discussões sobre o assunto. Não foram estabelecidos objetivos e nada foi pensado acerca do que vai acontecer a eles depois de tudo isso. A verdade é que ninguém está fazendo nada. Os capacetes azuis da ONU vão chegar no outono, mas o que farão? E qual será situação? Todos os muçulmanos da RCA estarão mortos ou fora dali. Não há razão para esperar um surgimento repentino de consciência e solidariedade, como pode ter acontecido em outros lugares. Os anti-Balaka, e a população em geral, querem ver uma ‘nova África Central’, exclusivamente cristã. Isso já começa a tomar forma no oeste do país, pela estrada de Paoua a Bangui. A pacificação pode ser alcançada, mas sem os muçulmanos. Sejamos francos: estamos testemunhando uma verdadeira limpeza silenciosa, sem objeções centro-africanas ou internacionais, em um país onde o número de tropas armadas não corresponde ao seu tamanho e onde muitas áreas continuam inacessíveis e em estado de caos.”

Último minuto
24 de maio – após o ataque aos habitantes muçulmanos de Carnot, confrontos entre anti-Balaka e as forças da MISCA eclodiram. Nove pessoas com ferimentos à bala ou causados por machete foram levadas para o hospital. Duas delas foram encaminhadas ao hospital geral administrado por MSF em Bangui. De acordo com a Cruz Vermelha centro-africana, os confrontos resultaram em oito pessoas mortas.

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