RDC: relatório da MSF revela número sem precedentes de casos de violência sexual

A MSF ajudou a tratar mais de 25 mil sobreviventes de violência sexual na República Democrática do Congo em 2023, e essa tendência de aumento manteve-se em 2024

© Alexandre Marcou/MSF

A Médicos Sem Fronteiras (MSF), juntamente com o Ministério da Saúde da República Democrática do Congo (RDC), tratou um número sem precedentes de sobreviventes de violência sexual em 2023 – uma tendência que se manteve nos primeiros meses de 2024, segundo um relatório publicado pela organização na passada segunda-feira, intitulado “We are Calling For Help – care for victims of sexual violence in the Democratic Republic of Congo“.

Em 2023, as equipas da MSF ajudaram a tratar 25 166 sobreviventes de violência sexual em todo o país. Isso equivale a mais de 2 pessoas a cada hora. Este número é, de longe, o mais elevado alguma vez registado pela MSF na RDC, com base em dados de 17 projetos estabelecidos com o apoio do Ministério da Saúde em cinco províncias congolesas – Kivu do Norte, Kivu do Sul, Ituri, Maniema e Cassai Central. Em anos anteriores (2020, 2021 e 2022), as nossas equipas trataram, em média, 10 000 sobreviventes por ano no país.

Esta tendência acelerou nos primeiros meses de 2024: só na província de Kivu do Norte, receberam tratamento 17 363  sobreviventes com o apoio da MSF, entre janeiro e maio. Mesmo antes do fim do primeiro semestre do ano, este número representava já 69 por cento do total de vítimas tratadas em 2023 nas cinco províncias acima mencionadas.

 

Mulheres deslocadas são o grupo em maior vulnerabilidade

“De acordo com os testemunhos dos nossos pacientes, dois terços deles foram atacados sob a ameaça de armas”, avança o coordenador-geral dos projetos da MSF na RDC, Christopher Mambula. “Estes ataques ocorreram nos próprios locais, mas também nos arredores, quando mulheres e raparigas – que representam 98 por cento das vítimas tratadas pela MSF na RDC em 2023 – saíram para recolher lenha ou água, ou para trabalhar nos campos.”

Embora a presença maciça de homens armados dentro e nos arredores dos campos para deslocados explique esta explosão de violência sexual, a inadequação da resposta humanitária e as condições de vida desumanas nesses locais alimentam o fenómeno. A falta de alimentos, água e atividades geradoras de rendimento exacerbam a situação vulnerável de mulheres e raparigas (1 em cada 10 sobreviventes tratadas pela MSF em 2023 eram menores), que são obrigadas a ir para as colinas e campos vizinhos, onde há muitos homens armados.

A falta de saneamento e de abrigos seguros deixa-as vulneráveis a ataques. Outras são vítimas de exploração sexual para sustentar as famílias.

 

campo de deslocados na RDC
Campo para deslocados em Kivu do Norte © Marion Molinari/MSF

 

Analisados e verificados ao longo de vários meses, os dados de atendimento de 2023 apresentados no relatório “Estamos a Pedir Ajuda” mostram que 91 por cento das pessoas tratadas na RDC foram tratadas na província de Kivu do Norte, onde os confrontos entre o grupo M23, o exército congolês e respetivos aliados têm-se intensificado desde o final de 2021, forçando centenas de milhares de civis a fugir. A grande maioria das vítimas (17 829) recebeu cuidados nos campos para deslocados ao redor de Goma, que continuaram a crescer ao longo do ano passado.

 

É necessário muito mais para proteger as mulheres e atender às necessidades urgentes das sobreviventes.”

– Christopher Mambula, coordenador-geral dos projetos da MSF na RDC

 

“Em teoria, parece haver muitos programas para prevenir e responder às necessidades dos sobreviventes de violência sexual. Mas, no terreno, nos acampamentos, as nossas equipas lutam todos os dias para encaminhar vítimas que necessitam de ajuda”, frisa Christopher Mambula. “Os poucos programas que existem são sempre demasiado curtos e gravemente subfinanciados. É necessário muito mais para proteger as mulheres e responder às necessidades urgentes das vítimas.”

 

Apelos urgentes à ação 

Atendimento psicológico a sobreviventes de violência sexual na RDC
Atendimento psicológico a sobreviventes de violência sexual na RDC © Candida Lobes/MSF

 

Com base nas necessidades expressas pelas vítimas e em trabalhos anteriores que tentaram resolver este problema de longa data no país, o relatório da MSF lista cerca de 20 ações urgentes a serem tomadas pelas partes em conflito, pelas autoridades congolesas – nacionais, provinciais e locais – bem como pelos doadores internacionais e pelo setor humanitário.

 

Existem três áreas principais de ação urgente:

 

  • Em primeiro lugar, a MSF exige a todas as partes em conflito que garantam o respeito pelo direito humanitário internacional. Em particular, exige-se a proibição absoluta de atos de violência sexual, bem como o respeito pela natureza civil dos campos para deslocados. A proteção dos civis encurralados no meio de combates deve ser uma prioridade. O apelo para proteger os civis contra abusos também é dirigido àqueles envolvidos em programas humanitários.

 

  • Em segundo lugar, a MSF insta à melhoria das condições de vida nos locais para deslocados internos. Em concreto, é necessário melhorar o acesso às necessidades básicas – alimentos, água, atividades geradoras de rendimento – bem como o acesso a saneamento e a abrigos seguros e bem iluminados. Estes investimentos devem também ser acompanhados por esforços acrescidos para aumentar a consciencialização sobre a violência sexual. Embora o financiamento humanitário deva ser suficientemente flexível para responder às necessidades emergentes e urgentes, os parceiros devem também demonstrar responsabilidade no desenvolvimento de atividades.

 

  • Por fim, a MSF apela a um investimento específico em melhores cuidados médicos, sociais, legais e psicológicos para sobreviventes de violência sexual. Isso requer financiamento a longo prazo para melhorar a formação médica, o fornecimento de kits pós-violação às unidades de saúde, apoio jurídico, bem como a disponibilização de abrigos para os sobreviventes. Também é necessário financiamento para atividades de sensibilização para evitar a estigmatização ou marginalização de sobreviventes, o que por vezes as impede de procurar ajuda. Dado o elevado número de pedidos de aborto por parte de sobreviventes, a MSF insta também à adaptação do quadro legal nacional para garantir o acesso aos cuidados médicos completos de aborto.

 

A violência sexual é uma grande emergência médica e humanitária. Segundo as últimos dados da Área de Responsabilidade da Violência Baseada no Género na RDC, que compila dados de várias organizações humanitárias que prestam serviços de cuidados à violência baseada no género em 12 províncias do país, 55 500 sobreviventes de violência sexual receberam cuidados médicos no segundo trimestre de 2024.

A MSF insta todas as partes interessadas, nacionais e internacionais, a tomarem medidas urgentes de prevenção e a melhorarem o atendimento a sobreviventes de violência sexual.

 

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