Reconstruir a vida em Gaza depois de amputações

Amro, Mohammad, Muawiyah e Mahmoud têm uma mesma experiência em comum: todos tiveram de ser amputados depois de serem gravemente feridos pelas forças israelitas. Sofreram ferimentos durante as manifestações em 2018 e 2019 conhecidas como Grande Marcha do Retorno ou na explosão de rockets israelitas no conflito de maio de 2021. Todos contaram as suas histórias ao fotógrafo Giles Duley, também amputado, devido a ferimentos sofridos em zonas de conflito. Os encontros entre eles são contados também em fotografias

Raed Riad Hanouna, de 46 anos, nas escadas do seu prédio. Foi-lhe amputada uma perna depois de ter sofrido ferimentos durante as manifestações da Grande Marcha do Retorno.
Raed Riad Hanouna, de 46 anos, nas escadas do seu prédio. Foi-lhe amputada uma perna depois de ter sofrido ferimentos durante as manifestações da Grande Marcha do Retorno. ©Giles Duley

Amro, Mohammad e Mahmoud são três das cerca de 36 000 pessoas que foram feridas durante os protestos da Grande Marcha do Retorno. Estas manifestações ocorreram junto à barreira de segurança entre Gaza e Israel, todas as sextas-feiras entre 30 de março de 2018 e dezembro de 2019, para assinalar o 70º aniversário do êxodo de 1948, evento a que os palestinianos chamam Nakba. Muawiyah foi ferido durante os bombardeamentos de 2021 sobre a Faixa de Gaza por parte das forças israelitas. Como outros 152 palestinianos, estas pessoas sofreram amputações para evitar os riscos de infeção nos seus ferimentos.

O fotógrafo Giles Duley perdeu duas pernas e um braço após ter pisado uma mina no Afeganistão em 2011.

 

Sou fotógrafo, chef e escritor, e sou eu mesmo um amputado. Identifico-me com as histórias deles de forma muito pessoal.

 

Durante os protestos de 2018-2019, a Médicos Sem Fronteiras (MSF) triplicou a capacidade médica de prestação de cuidados às pessoas feridas, providenciando cirurgias plásticas e ortopédicas, assim como tratamento de infeções ósseas resultantes dos ferimentos. A organização médico-humanitária também forneceu acompanhamento pós-operatório, incluindo mudanças de ligaduras, fisioterapia, gestão da dor e apoio psicossocial. Desde a primeira manifestação, a 30 de março de 2018, até 30 de novembro de 2019, a MSF teve sob cuidados de internamento hospitalar mais de 4 830 pessoas nas unidades de traumatologia.

Quatro anos depois do início dos protestos, muitos pacientes continuam a viver com as consequências devastadoras dos ferimentos sofridos, que têm um custo cada vez mais pesado nas suas vidas e nas vidas dos entes queridos. Para muitas destas pessoas, a gravidade dos ferimentos faz com que a amputação seja inevitável. “Se não se fizer a amputação quando é necessário, o corpo acaba por ter de lutar contra uma infeção crónica como o cancro”, explica o cirurgião da MSF Herwig Drobetz, que trabalha na unidade de reconstrução de membros do Hospital Al-Awda. “Estes pacientes têm uma aparência de estar muito doentes. Normalmente estão cansados e desnutridos. Após serem amputados, ficam totalmente diferentes. Sentem-se melhor e é incrível a rapidez com que recuperam”, acrescenta.

No entanto, a amputação é frequentemente vista como um fracasso pelos pacientes e por quem os rodeia, o que dificulta muitas vezes que a operação seja aceite. Algumas pessoas recusam-a mesmo, espcialmente os homens jovens que preferem passar anos com dor crónica, cirurgias repetidas e mobilidade reduzida, para conseguirem manter o membro do corpo.

Giles Duley compreende isto por experiência própria. “Sendo eu mesmo um amputado, tive muitas conversas com pessoas que estão a ter de lidar com a ideia de perder um membro e com os desafios psicológicos que antecedem a cirurgia. Para os homens jovens há muitas razões para essa hesitação. O medo de não arranjarem trabalho e não conseguirem sustentar as suas famílias, o estigma e a vergonha que sentem com a nova imagem corporal.”

 

Há pacientes que me disseram que já não se sentem ‘homens de verdade’ ou que ninguém gostará deles. Sentem uma necessidade de lutar contra o ferimento em vez de cederem e optarem pela amputação. Compreendo estas preocupações. Mas se pusermos o preconceito de lado, com o apoio de quem nos rodeia, é possível ter uma vida totalmente normal. Temos de dar visibilidade a estas histórias positivas e combater o estigma.

 

Giles Duley convidou Amro, Mohammad, Muawiyah e Mahmoud a contarem as histórias das suas vidas após a amputação, durante a visita que fez a Gaza em março de 2022.

 

Capítulo 1º: Amro Ayman Alhadad

Amro Ayman Alhadad tem 23 anos e foi ferido por uma bala do Exército israelita a 14 de maio de 2018, durante a Grande Marcha do Retorno. Junto com alguns dos colegas de escola, participou na manifestação motivada pela decisão do então Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em transferir a embaixada norte-americana para Jerusalém, o que exarcebou as tensões existentes.

O autocarro em que seguia chegou ao local da manifestção às 11h15. Quinze minutos depois, foi alvejado numa perna e ficou inconsciente.

Nesse dia, de acordo com autoridades de saúde em Gaza, 52 palestinianos foram mortos e 2 400 feridos. Naquela situação caótica, Amro foi dado como morto. Foi por pura sorte que um vizinho dele que trabalhava como condutor de ambulância o viu entre os corpos e percebeu que ele ainda estava vivo.

 

Amro Ayman Alhadad foi ferido por uma bala do Exército israelita a 14 de maio de 2018. Após receber tratamento de urgência em Gaza, foi transferido para a Turquia para mais procedimentos cirúrgicos. Uma das pernas foi-lhe amputada.
Amro Ayman Alhadad foi ferido por uma bala do Exército israelita a 14 de maio de 2018. Após receber tratamento de urgência em Gaza, foi transferido para a Turquia para mais procedimentos cirúrgicos. Uma das pernas foi-lhe amputada. “Encontrei escape a desenhar. Vejo vídeos online e aprendi eu mesmo a ser artista.” ©Giles Duley

 

Após ter recebido tratamento de urgência em Gaza, Amro foi transferido para a Turquia para ser submetido a mais cirurgias. Foi-lhe amputada uma perna. Quando regressou, fechou-se em casa, no apartamento da família na Cidade de Gaza.

 

Encontrei escape a desenhar. Vejo vídeos online e aprendi eu mesmo a ser artista.

 

Amro passa os dias em casa a desenhar e a cuidar do seu pássaro, que nunca sai de perto dele. Não se atreve a sair por recear que as pessoas fiquem a olhar para a perna amputada. E tem medo de multidões.

 

Amro Ayman Alhadad foi ferido por uma bala do Exército israelita a 14 de maio de 2018. Após receber tratamento de urgência em Gaza, foi transferido para a Turquia para mais procedimentos cirúrgicos. Uma das pernas foi-lhe amputada.
Amro Ayman Alhadad. © Giles Duley

 

À margem das sessões fotográficas, Giles Duley propõe a Amro que partilhem um momento fora de casa. “No meu último dia em Gaza, pedi ao Amro que viesse tomar um café comigo numa parte sossegada da praia. Ele concordou e passámos algumas horas a beber café e a conversar. Sugeri-lhe que conhecesse o Mahmoud [outro paciente da MSF; ver capítulo 4º] e se juntasse a um grupo de apoio para amputados. É através das experiências de outros que encontramos esperança. Ele prometeu que o faria e pediu-me para partilhar a sua história – ‘Talvez se eu sair, isso dê esperança a outra pessoa’, disse-me.”

 

Capítulo 2º: Mohamad Soliman Mohamad Saad

Mohammad Saad foi ferido a 21 de setembro de 2018. Acorreu à barreira de separação depois de saber que o filho de 15 anos tinha sido ferido. Momentos após o ter encontrado, também ele foi alvejado numa perna pelas forças israelitas. Quando recuperou os sentidos, foi-lhe dito que poderia perder a perna devido a um coágulo de sangue.

Nos anos que se seguiram, foi submetido a dez operações para estabilizar o estado da perna, mas não conseguia andar. Passava os dias inteiros com dores e foi ficando cada vez mais frustrado por não conseguir trabalhar.

 

Mohamad foi alvejado numa perna pelas forças israelitas em setembro de 2018.
Mohamad foi alvejado numa perna pelas forças israelitas em setembro de 2018. “Se os médicos aconselham a amputação, recomendo que o façam. Antes de o ter feito, eu não podia sair nem brincar com os meus filhos. Agora posso fazer tudo. Após três anos de dores, posso finalmente prosseguir com a minha vida.” ©Giles Duley

 

Em 2021, Mohammad Saad teve a primeira consulta com as equipas da MSF, que lhe recomendaram a amputação da perna. Aceitou rapidamente, determinado em seguir em frente. “Felizmente não senti nenhum estigma. A minha mulher e a minha família mostraram-me muito amor e deram-me incentivo durante todo o processo.”

 

A minha mulher é definitivamente a principal razão pela qual aceitei a amputação e os desafios que lhe estão inerentes. Claro, a minha mãe também… Nunca lhes pedi ajuda. Elas simplesmente sabiam como me apoiar.

 

Depois de passar por esta provação, Mohammad não hesita nem um pouco em partilhar a sua experiência. “Se os médicos aconselham a amputação, recomendo que o façam. Antes de o ter feito, eu não podia sair nem brincar com os meus filhos. Agora posso fazer tudo. Após três anos de dores, posso finalmente prosseguir com a minha vida.”

 

Mohamad foi alvejado numa perna pelas forças israelitas em setembro de 2018.
Mohamad Soliman Mohamad Saad. © Giles Duley

 

Capítulo 3º: Muawiyah al-Wahidi

A 12 de maio de 2021, Muawiyah al-Wahidi, de 42 anos, estava a abrir a sua barbearia na Cidade de Gaza, quando um rocket atingiu um carro na rua. Ele ficou ileso, mas o alfaiate que trabalhava mesmo em frente apareceu a correr, a gritar que tinha sido atingido no peito. A meio caminho de Muawiyah, desmaiou, com sangue a escorrer-lhe da boca.

 

Muawiyah teve a perna direira amputada depois de um rocket ter caído junto dele, na Cidade de Gaza.
Muawiyah teve a perna direira amputada depois de um rocket ter caído junto dele, na Cidade de Gaza. “Olhava para mim mesmo e depois para os outros, e dizia que não queria ser diferente. De início, foi difícil para mim e para as crianças. Mas felizmente ultrapassámos isso.” ©Giles Duley

 

Muawiyah estava agachado junto a ele a recitar orações quando um segundo rocket atingiu o local. Quando acordou já no hospital, a perna direita tinha-lhe sido amputada e o tornozelo esquerdo estava partido.

Nas semanas que se seguiram, Muawiyah recusou-se a comer e estava com depressão. “Olhava para mim mesmo e depois para os outros, e dizia que não queria ser diferente.” Quando regressou a casa do hospital, a depressão agravou-se.

 

De início, recusava a comida que a minha mulher cozinhava. Foi difícil para ela. Eu estava zangado com ela, com o meu irmão, com as crianças. Foi duro. Mas felizmente ultrapassámos isso.

 

O apoio da comunidade desempenhou um papel importante na recuperação de Muawiyah al-Wahidi. Tal como o aconselhamento da psicóloga Marwah, que o ensinou e à mulher, Yassmin, a lidar com a raiva e a depressão.

 

Muawiyah teve a perna direira amputada depois de um rocket ter caído junto dele, na Cidade de Gaza.
Muawiyah al-Wahidi. © Giles Duley

 

Uns dias depois de ter conhecido Muawiyah na sua barbearia, o fotógrafo Giles Duley foi convidado para jantar com a família. “Eles sabiam que eu queria muito aprender a fazer musakhan, uma receita palestiniana com frango, cebolas e sumagre postos sobre pão laffa [pão achatado, central na culinária palestiniana], que absorve o molho. Enquanto cozinhávamos, Yassmin disse-me: ‘No princípio foi difícil para mim e para as crianças. Eu tive de me fazer de forte por todos.’ Ao sentarmo-nos para comer, perguntei a Muawiyah se ele estava com apetite. Respondeu-me: ‘Agora consigo desfrutar da comida novamente, deste prato.’”

 

Capítulo 4º: Mahmoud Khaled Ibrahim Khader

Mahmoud Khaled Ibrahim Khader, de 27 anos, teve de amputar uma perna depois de ter sido alvejado na coxa em maio de 2018.

Foi inicialmente encaminhado para um hospital na Jordânia, onde os cirurgiões lhe tentaram salvar a perna. Ao fim de 38 dias e sem sinais de cicatrização óssea, foi tomada a decisão de amputar. Seguiram-se outras cirurgias, mas não foi possível usar uma prótese porque o ferimento permanecia infetado.

 

Mahmoud teve uma perna amputada depois de ter sido alvejado na coxa em maio de 2018. Foi um encontro fortuito com um grupo de ciclistas amputados que ajudou Mahmoud a encontrar paz.
Mahmoud teve uma perna amputada depois de ter sido alvejado na coxa em maio de 2018. Foi um encontro fortuito com um grupo de ciclistas amputados que ajudou Mahmoud a encontrar paz. “Andar de bicicleta tornou-se no meu escape… andar de bicicleta será sempre uma parte da minha vida.” © Giles Duley

 

Em julho de 2020, dois anos depois de ter perdido a perna, Mahmoud conheceu uma equipa médica da MSF, que lhe sugeriu fazer uma nova amputação. A equipa estava convicta de que remover uns adicionais cinco centímetros de osso iria reduzir a infeção e criar um toco mais estável que seria mais adequado a uma prótese. Praticamente logo após a cirurgia, Mahmoud sentiu a diferença. E em pouco tempo pôde usar uma prótese e regressar ao trabalho.

Mesmo assim, Mahmoud sente-se sujeito ao olhar insistente de com quem se cruza e aos preconceitos, como a ideia de que as pessoas amputadas são mais propensas a tornarem-se viciadas em drogas.

 

Os pais da minha namorada recusaram-se a deixar-me casar com ela. Diziam ‘Tu estás a tomar tramadol [substância analgésica], não queremos que a nossa filha case com um viciado em drogas.’ Isto foi muito duro de ouvir. Até o meu melhor amigo pensava assim.

 

Acabou por ser um encontro fortuito com um grupo de ciclistas amputados que ajudou Mahmoud a encontrar paz. Agora pode libertar energia e simultaneamente passar algum tempo a conversar com pessoas que partilham uma experiência semelhante à dele.

 

Andar de bicicleta tornou-se no meu escape e, através desta atividade, as pessoas puderam ver que eu era atlético e não usava drogas.

 

Uma semana antes de conhecer o fotógrafo Giles Duley, Mahmoud casou-se. Hoje em dia sonha em começar a ter filhos. “Mas, andar de bicicleta será sempre uma parte da minha vida. Este grupo também é a minha família.”

 

Mahmoud teve uma perna amputada depois de ter sido alvejado na coxa em maio de 2018. Foi um encontro fortuito com um grupo de ciclistas amputados que ajudou Mahmoud a encontrar paz.
Mahmoud Khaled Ibrahim Khader. © Giles Duley
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