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Aryadne Bittencourt, Larissa Getirana e Fabrício Toledo¹
Como era esperado, o número de pessoas deslocadas em 2017 por motivos relacionados a conflitos, guerras, perseguições ou graves violações dos direitos humanos superou as estatísticas do ano anterior e confirmou a tendência de agravamento. São 4,4 milhões de pessoas a mais, totalizando cerca de 68,5 milhões de pessoas deslocadas, dos quais 52% são crianças. Do número total de refugiados, 68% vêm de apenas cinco países: Síria, Afeganistão, Sudão do Sul, Mianmar e Somália. Esses dados, divulgados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), por ocasião do Dia Mundial dos Refugiados, não incluem as pessoas que se deslocaram em razão de outras formas de violação dos direitos humanos, como catástrofes ambientais, fome severa, pobreza e desigualdade extremas, não consideradas razões para proteção pelo instituto do refúgio, além daqueles que foram mortos atravessando oceanos e desertos.
A crise humanitária dos refugiados e migrantes impacta de maneira especial as populações mais pobres do planeta, que não apenas convivem com a violência direta, mas também suportam a grande parte do ônus dos deslocamentos. Ainda assim, todas as regiões do globo foram afetadas pela chegada de refugiados e migrantes, sendo que a maior parte das crises já deixava escapar, anos antes, sinais claros de agravamento, especialmente na forma de deslocamentos crescentes e de testemunhos consistentes.
A despeito disso, a reação dos Estados, principalmente daqueles com maior possibilidade de incidir positivamente sobre as crises, seja por sua capacidade estrutural e financeira ou por sua relevância política, caminha em direção a medidas de maior restrição de direitos e de mobilidade. O fato de coexistirem duas negociações paralelas, uma em torno de um Pacto global para refugiados e outro para migrantes, é expressão da resposta ambígua dos Estados: a promoção de soluções protetivas aos refugiados é simultânea aos mecanismos de restrição aos migrantes, e sempre a partir de uma distinção arbitrária entre as duas figuras, conforme as conveniências de agendas pouco transparentes.
A retórica da segurança, da austeridade e da preservação da soberania é manobrada para converter o terrível sofrimento de milhões de pessoas em mero problema de gestão. A excepcionalidade das guerras e mortes é assimilada ao funcionamento normal e ordinário dos Estados e de suas instituições, na mesma medida em que as respostas são sempre provisórias e pontuais. Neste sentido, a atual crise dos refugiados é oportunidade para se refletir sobre a crise das instituições, e não apenas pelo que aparentemente sejam seus déficits, mas especialmente pela sua eficiência em subjugar as pessoas mais vulneráveis. É neste ponto que a crise dos refugiados encontra a crise política em sua dimensão global e que a figura do migrante e do refugiado devem ser apreendidas não apenas em seu caráter “humanitário”, mas igualmente por sua força política, ou seja, pela demanda evidente, coletiva e generalizada por instituições mais justas, igualitárias e democrática.
O Brasil não está livre do impacto da “crise” dos refugiados e migrantes: o número de solicitações em 2018 é 160% maior do que o do período anterior. No entanto, com um número relevante de solicitações de refúgio (cerca de 85 mil) e de migrantes com residência (148.645 pessoas) , o total de refugiados (10.264) é proporcionalmente pequeno em relação à população e em comparação com os principais países receptores na região. O dado mais significativo em relação ao Brasil, porém, diz respeito às medidas de proteção após o reconhecimento como refugiado ou residente. Neste ponto, o Estado brasileiro ainda tem muitos desafios a superar para fazer jus à sua celebrada legislação. Se por um lado o sistema de refúgio é baseado em um modelo tripartite de decisão (com participação de atores governamentais, ACNUR e sociedade civil) e em uma generosa Lei de Refúgio (Lei 9474/97), a proteção dos diretos dos refugiados em seu processo de integração nas cidades brasileiras ainda merece maior atenção.
O mesmo pode se dizer em relação aos direitos dos migrantes. A nova Lei de Migração (Lei 13445/17), comemorada por superar definitivamente o Estatuto do Estrangeiro, voltado mais para a proteção da soberania nacional do que para os direitos das pessoas migrantes, carece de políticas públicas que efetivem as garantias anunciadas em seu texto e ansiosamente esperadas.
Quanto a isso, a atuação das organizações não-governamentais durante as maiores crises e também na implementação cotidiana da proteção aos refugiados e migrantes nos mostra que as soluções são possíveis e factíveis. A experiência nos mostra, assim, que a superação das crises, com soluções justas e solidárias para os migrantes e refugiados, não se dará através de meras decisões de gabinete, espelhadas nas tendências de recrudescimento que ganham espaço nos países ditos desenvolvidos. Em vez disso, a promoção de direitos e de participação, mais ampla e inclusiva, principalmente para os refugiados e migrantes, é a única saída para os impasses humanitários e políticos de nosso tempo.
¹ Aryadne Bittencourt, Larissa Getirana e Fabrício Toledo são integrantes do Setor de Proteção do PARES (Programa de Atendimento a pessoas Refugiadas e Solicitantes de Refúgio) da Cáritas do Rio de Janeiro.
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