República Centro-Africana: a violência em Bangui e o fluxo maciço de vítimas

Em abril, a capital do país foi tomada pela violência e nosso hospital por dezenas de feridos

República Centro-Africana: a violência em Bangui e o fluxo maciço de vítimas

Por mais de 18 meses, a República Centro-Africana (RCA) foi mais uma vez submetida à extrema violência perpetrada contra a população traumatizada pela guerra civil que ocorreu em 2013 e 2014. Até recentemente, a capital Bangui parecia ter sido poupada dos ataques e conflitos que surgiram em outras províncias.

Já não é mais o caso. Em apenas algumas semanas, mais de 150 vítimas foram atendidas no hospital SICA, mantido pela organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), em Bangui. As equipes tiveram que ativar dois planos de influxo em massa de pacientes para responder à emergência causada por uma sucessão de dias particularmente violentos na capital.

No domingo, dia 8 de abril, as forças de segurança nacionais e internacionais montaram uma operação conjunta contra grupos armados locais no centro econômico da cidade e principalmente no distrito muçulmano PK5. A operação levou a confrontos que deixaram dezenas de feridos, entre eles, a população civil e membros das forças armadas.

No dia 10 de abril, os combates começaram novamente e as vítimas chegaram em grande número às instalações médicas da cidade. Durante dois dias, as equipes do hospital SICA atenderam 64 pacientes, principalmente com feridas à bala.
A violência irrompeu novamente na terça-feira, dia 1° de maio, com confrontos e ataques contra o distrito de Fatima, que atingiu principalmente a igreja local, o distrito PK5 e os bairros vizinhos. Grupos armados, mas também pessoas no local, entraram em confronto, e a artilharia pesada ressoou por toda a cidade.

Sem precedentes desde 2015, esse ressurgimento da violência reacendeu as divisões entre as comunidades cristãs e muçulmanas e desencadeou uma onda de represálias em toda a cidade. Se movimentar é um desafio para as pessoas e, portanto, também para as equipes médicas e as ambulâncias. Casas e locais de culto foram incendiados e as famílias foram forçadas a deixar suas casas. Mais de 70 vítimas foram tratadas no hospital SICA em apenas algumas horas no dia 1º de maio, levando as equipes de MSF a ativarem o plano de influxo em massa de pacientes pela segunda vez.

Esse plano é ativado para responder a um influxo em massa de vítimas durante situações de emergência. Uma zona de triagem é estabelecida na entrada do hospital, onde a equipe médica determina a gravidade das lesões dos pacientes e atribui a eles uma cor. Aos pacientes com feridas menos graves é atribuída a cor “verde”. Uma vez examinados, alguns são imobilizados com gesso, recebem curativos ou são encaminhados para fazer exames de raio-X e solicitados a voltar para receber tratamento adicional dentro de alguns dias. Os que recebem a cor amarela precisam de cuidados mais complexos na sala de emergência e os que recebem a cor vermelha geralmente são levados diretamente para a sala de cirurgia. Pacientes que recebem a cor preta estão em condições tão críticas que ou já chegaram mortos ou acabam morrendo pouco tempo depois ou têm muita pouca chance de sobreviver.

Para as equipes de logística, o desafio é estabelecer, assim que o plano for ativado, um sistema para admitir e iniciar o atendimento de pacientes feridos, garantindo um nível mínimo de segurança. “Nossa prioridade era organizar uma zona de triagem, posicionar leitos e macas e montar uma área em frente ao hospital, onde os feridos poderiam entrar e sair, e os carregadores e a equipe médica poderiam trabalhar sem serem prejudicados pela multidão de pessoas”, explica Pierre, um dos especialistas em logística do hospital SICA. “Os guardas são realmente importantes. Eles conversam com as pessoas, tentam acalmar a situação e explicar o que MSF faz.”   No dia 1º de maio, a multidão atacou uma ambulância que eles achavam estar transportando muçulmanos feridos para o hospital SICA. A ambulância conseguiu passar.

As vítimas – homens e mulheres, mas também crianças – chegavam em ondas. “Os pacientes que tratamos nos dias em que ativamos o plano de vítimas em massa apresentavam feridas de guerra. Elas causam danos significativos aos ossos e aos tecidos e muitas vezes requerem um tratamento complicado e de longo prazo”, acrescenta André Valembrun, cirurgião ortopédico.
Pascale é enfermeira. Ela foi a Bangui para um propósito totalmente diferente: ajudar na introdução no longo prazo da osteossíntese no atendimento cirúrgico no hospital SICA. A emergência rapidamente teve prioridade sobre seu horário de trabalho, já que durante o plano, todos os profissionais médicos disponíveis foram chamados para ajudar. Pascale cuidava dos pacientes na zona “verde”. Embora indubitavelmente menos grave, “verde” não significa que as feridas dos pacientes sejam simples. Pascale viu pessoas com fraturas, feridas abertas e estilhaços de granada em seus rostos. “Um dos pacientes que mais me impressionou foi uma mulher que não tinha ideia de onde ela estava. Mais tarde, descobri que seu filho havia sido baleado e levado para outra instalação médica da cidade. Ela subiu em um mototáxi para encontrá-lo, mas com o pânico geral e a multidão de pessoas tentando fugir do conflito, ela acabou sofrendo um acidente. Ela se feriu e foi levada para o hospital SICA. Ela estava completamente fora de si, então eu fiquei com ela até ela gradualmente recuperar seus sentidos. Muitos pacientes estavam em estado de choque. Eles não esperavam tal nível de violência.”

Após a onda de choque, uma calmaria inquieta voltou a Bangui. Como alguns de seus colegas centro-africanos, Pierre quer acreditar que o pior cenário ainda é evitável. “Há uma atmosfera que alimenta os preparativos para a violência. Há muita incerteza e os rumores são frequentes. O acúmulo de tensões poderia desencadear uma enorme onda de violência. Mas as pessoas aqui estão bastante familiarizadas com uma violência sem sentido e, embora o medo seja realmente palpável, há também uma sensação de que o pior não é inevitável.”
 

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