Serra Leoa: quando as crianças voltam a sorrir

Médica de MSF fala sobre trabalho em departamento pediátrico em Kabala, no norte do país

Enquanto estudante, a dra. Regina Giera decidiu que queria trabalhar para uma organização de ajuda humanitária. Depois de trabalhar com Médicos Sem Fronteiras (MSF) na República Democrática do Congo e no Sudão do Sul, ela está, hoje, em seu terceiro projeto em Serra Leoa, um país que continua sofrendo com uma grande falta de cuidados médicos profissionais após a epidemia de Ebola.

Estou em Kabala, em Serra Leoa, há quase um mês agora, e finalmente encontrei tempo para escrever sobre o meu projeto. MSF apoia um grande hospital no norte do país. Trabalhamos em cooperação com o Ministério da Saúde e apoiamos a sala de emergência e as alas de pediatria e obstetrícia, além da farmácia e do laboratório da instalação.

Somos uma grande equipe de profissionais estrangeiros: atualmente, a equipe médica é formada por nove pessoas, incluindo dois ginecologistas, uma obstetriz, um cirurgião, três enfermeiros emergencistas para controle de infecções e pediatria e um técnico de laboratório. Sou responsável pela sala de emergência e pelo departamento de pediatria.
 

Depois do Ebola

Um dia normal de trabalho começa às 7h30, quando vamos juntos ao hospital, que fica a cerca de dez minutos de carro da nossa casa. A ronda da manhã começa primeiramente na sala de emergência e depois no departamento de pediatria.

Na equipe, tenho sete técnicos em Medicina [formação que não existe no Brasil] que realizam trabalhos médicos. Um grande desafio para o sistema de saúde em Serra Leoa é a falta de profissionais qualificados – há um único médico do Ministério da Saúde aqui, e ele também é o diretor médico do hospital.

Durante a epidemia de Ebola, muitos profissionais de saúde morreram ou fugiram do país, o que tornou a situação da saúde em Serra Leoa ainda pior.

Serra Leoa tem um dos maiores índices de mortalidade materno-infantil do mundo, 50% a mais do que seus países vizinhos, Guiné ou Libéria, na África Ocidental. Esse é um dos motivos que levou MSF a decidir ficar no país após o fim da epidemia de Ebola e, acima de tudo, oferecer cuidados de obstetrícia e pediatria.

 

A ala das crianças

Na maioria das vezes, tenho muito trabalho diário na parte de pediatria. Muitos de nossos pequenos pacientes sofrem de malária grave, doenças diarreicas com desidratação, infecções respiratórias ou desnutrição.

Durante as visitas, apoio nossos técnicos em Medicina e realizo muitos treinamentos práticos junto aos leitos. Um dos maiores esforços de MSF é o desenvolvimento das habilidades e da capacidade médica dos profissionais locais, o que demanda treinamento e suporte para as equipes nacionais.

Às 13h, a equipe internacional se reúne para o almoço e, às 14h todos voltam para o hospital – principalmente para ver os pacientes que estão internados, verificar os resultados dos exames laboratoriais, realizar treinamentos e discussões de casos, e transferir pacientes em estado crítico para instalações especializadas, se necessário. Normalmente trabalhamos até 18h ou 19h – e às vezes até mais tarde.

Temos nossa própria ambulância, de modo que conseguimos chegar rápido ao hospital, especialmente quando há emergências durante a noite. O trabalho, normalmente, é interminável e muito cansativo.

No entanto, é possível se sentir recompensado ao ouvir as risadas de crianças que chegam ao hospital quase mortas e, depois de um tratamento intensivo, podem voltar para suas casas felizes e saudáveis, assim como pela gratidão por parte de mães e pais.

 

Minhas crianças

Aqui conto uma pequena história de “minhas” crianças:

Na semana passada, fui chamada na sala de emergência. Havia um menino de cinco anos com dispneia aguda e edema – quando a água fica retida no corpo.

Um exame de ultrassom mostrou uma grande concentração de fluidos em seu abdômen. Para aliviá-lo e ter um diagnóstico melhor, fizemos uma punção. Nosso diagnóstico preventivo mostrou que ele tinha tuberculose aliada à desnutrição.

O menino morava sozinho com sua avó doente em uma região remota do norte de Kabala. A mãe havia saído de casa há três meses para conseguir dinheiro. Quando ela voltou, encontrou seu filho nesse estado crítico de saúde, e o trouxe para o hospital. Depois que o estabilizamos na sala de emergência, levamos o menino até a clínica pediátrica.

Para tratar a desnutrição, usamos um leite especial, que primeiro tivemos que ministrar por via nasal, já que o paciente estava muito fraco pra beber sozinho.

Com esse tratamento e os devidos antibióticos, a condição do nosso pequeno paciente melhorava a cada dia.

Eu também me conectava por telemedicina com especialistas da Europa, que forneciam diagnósticos e recomendações sobre os tratamentos – isso foi possível por meio de uma plataforma de MSF na internet que permite consultar especialistas de outras partes do mundo. Depois de dois dias, pudemos remover o tubo do estômago do menino e alimentá-lo usando xícara e colher.

Inicialmente, o leite terapêutico é ministrado oito vezes ao dia, a cada três horas. Após alguns dias o paciente começa a receber outro tipo de leite, que contém mais calorias, mais proteínas e lactose.

A saúde de nosso jovem paciente melhorou visivelmente – o edema diminuiu e seu apetite finalmente voltou.

Antes de dispensarmos crianças desnutridas do regime de internação, elas devem passar por um teste de apetite. Elas devem comer uma porção inteira de alimento terapêutico (à base de pasta de amendoim ou biscoitos especiais).

Nosso menino comeu toda a quantidade necessária de pasta de amendoim em um tempo recorde, e depois, com os olhos arregalados, ainda pediu mais!

Finalmente pudemos liberá-lo para ir para casa, com o acompanhamento e os tratamentos necessários do programa ambulatorial de nutrição (que aqui é apoiado pelo UNICEF).

Com nossa equipe de educação em saúde pudemos trazer a avó do menino para o hospital para que ela fosse diagnosticada e recebesse tratamento. Hoje, ela também recebe tratamento do Programa Nacional de Tuberculose.

As fotos desta história foram tiradas com o consentimento da mãe da criança – um de nossos enfermeiros pediu autorização a ela no idioma local, Krio.

Estou me esforçando muito para aprender Krio – uma mistura de inglês e português. Meu vocabulário médico e hospitalar (diarreia, vômito, dor de estômago, febre…) já é considerável!

Espero encontrar mais tempo para escrever em breve, mas, por enquanto, muitos pequenos pacientes que vivem grandes desafios estão esperando por mim.

Saudações de Serra Leoa,

Regina.

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