Violência e obstruções à resposta que salva vidas no Mediterrâneo Central

Dados operacionais e médicos e os testemunhos de sobreviventes recolhidos a bordo do navio de buscas e salvamento operado pela MSF expõem o conluio da Itália e da União Europeia com a Guarda Costeira da Líbia

© Simone Boccaccio, 2024

A remoção orquestrada dos navios de buscas e salvamento, como o Geo Barents, do Mediterrâneo Central destrói uma tábua de salvação para os sobreviventes que fogem da violência horrível que as pessoas enfrentam na Líbia. Esta é a conclusão clara do novo relatório emitido pela Médicos Sem Fronteiras (MSF), intitulado “Deadly Manoeuvres: Obstruction and Violence in the Central Mediterranean”.

O relatório assenta em dados operacionais e médicos e nos testemunhos de sobreviventes recolhidos pelas equipas da MSF a bordo do navio de buscas e salvamento Geo Barents, operado pela organização médica-humanitária, durante os anos de 2023 e 2024.

Nele é detalhado como, após mais de dois anos a funcionar sob as restritivas leis e políticas de Itália – em particular do chamado Decreto Piantedosi e das práticas de atribuição de portos de desembarque longínquos –, a capacidade dos navios de buscas e salvamento em providenciar assistência foi gravemente limitada. O que acabou por levar a MSF, em última análise, à decisão de cessar as operações do Geo Barents em dezembro de 2024.

Devido às restrições impostas, o número de pessoas que o Geo Barents pôde resgatar do mar baixou drasticamente em 2024 (2278), para metade do total no ano anterior (4646), Apesar disso o número de encaminhamentos médicos feitos a partir do navio, especialmente transferências de urgência, aumentou em 14 por cento. Isto sugere que uma percentagem consideravelmente mais alta das pessoas resgatadas se encontravam em estado crítico e a necessitar de cuidados especializados vitais em terra.

“O Decreto Piantedosi confere um mecanismo estruturado e institucionalizado sem precedentes para obstruir as atividades civis de buscas e salvamento”, frisa o representante da MSF para as operações de buscas e salvamento, Juan Matías Gil. “O impacto destas sanções agravou ao longo dos anos e a capacidade de resgate do nosso navio de buscas e salvamento foi significativamente subutilizada e ativamente minada”, prossegue.

Este relatório apresenta também testemunhos de pessoas que conseguiram fugir da Líbia, os quais documentam interceções violentas no mar pelas quais passaram, assim como incidentes em que foram forçadas a regressar à Líbia, como parte do esforço mais amplo de externalização que visa impedir chegadas à Europa. “Os testemunhos, os dados e as provas que coligimos durante estes anos demonstram o conluio da Itália e da União Europeia com a Guarda Costeira da Líbia e outras entidades armadas, na realização de interceções e empurrando as pessoas de volta para o ciclo de extorsão e abuso”, explica ainda Juan Matías Gil.

De acordo com os dados médicos recolhidos pelas equipas da MSF, todos os pacientes (124) que foram observados pelos profissionais de psicologia a bordo do Geo Barents reportaram terem sido sujeitos a violência física e/ou psicológica durante a jornada que encetaram. Metade destas pessoas identificaram que as detenções foram a principal situação em que os abusos ocorreram.

O relatório conclui com a exigência de que as autoridades da Itália deixem de perturbar as operações no mar que salvam vidas e cessem de impor sanções aos navios de buscas e salvamento das ONG. São também exortados a União Europeia e os Estados-membros a porem fim imediato ao apoio financeiro e material dado à Guarda Costeira líbia e a deixarem de deliberadamente facilitar o regresso forçado de pessoas à Líbia.

 

A MSF tem estado ativa e envolvida em atividades de buscas e salvamento no Mediterrâneo Central desde 2015, tendo operado com oito navios de buscas e salvamento (a título próprio ou em parceria com outras ONG) e salvado mais de 94.000 pessoas.

A organização médica-humanitária manteve atividades com o navio mais recente, o Geo Barents, entre junho de 2021 e dezembro de 2024 – com o qual foram salvas 12.675 pessoas, trazidas para segurança em 190 operações de resgate. Durante este período, as equipas da MSF também recuperaram os corpos de 24 pessoas (incluindo após reanimações mal sucedidas e pessoas que morreram a bordo), providenciaram a transferência médica de 14 pessoas e prestaram assistência no parto de um bebé.

Em janeiro de 2023, o Decreto Piantedosi (Decreto-Lei 1/2023) introduziu uma nova série de regras em Itália, aplicáveis exclusivamente aos navios civis de buscas e salvamento, e um conjunto de sanções por incumprimento que determinam, com crescente agravamento, desde o apresamento da embarcação em porto durante 20 dias até à apreensão do navio.

Desde a entrada em vigor do punitivo Decreto Piantedosi, o Geo Barents foi sancionado quatro vezes, no total de 160 dias acumulados de apresamento. Entre dezembro de 2022 e dezembro de 2024, as medidas de obstrução fizeram também com que o Geo Barents tivesse de navegar mais 64.966 quilómetros e passar 163 dias adicionais no mar para chegar a portos distantes no Norte de Itália de forma a desembarcar os sobreviventes após os resgates, em vez de lhe ser permitido fazê-lo em portos mais próximos na Sicília.

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